Talvez esse tema seja tão claro para você, leitor, que deve ser muito simples entender que o consumo de cultura pop japonesa está diretamente associado à compra de mangás e assinaturas nas plataformas de streaming, consumindo assim quadrinhos, animes, games, filmes, doramas, animações japonesas e similares.
Por mais que seja simples mesmo relacionar o consumo com as plataformas que possuímos hoje, nem sempre foi assim. Na verdade lá em 2010 já era tudo muito diferente e o consumo dessas mídias todas era bem menos acessível. E é disso que se trata esse texto: como foi a criação do fandom no Japão e no mundo para que as mídias da cultura pop se tornassem tão fortes.
Houve várias etapas da história para que a sociedade ocidental, por exemplo, tivesse as facilidades de hoje, como a leitura por celular, Kindle, TV smart com assinatura de Prime Video, Netflix e Crunchyroll. E sem esses acontecimentos desde o século XX, não teríamos as mídias japonesas e muita coisa ainda estaria fechada somente ao próprio Japão.
Sem a forte influência dos EUA e da Europa, não teríamos CDZ, Tokusatsus, Sailor Moon e outros clássicos japoneses da década de 1990 nas TVs brasileiras. Sem a criação de um mercado televisivo brasileiro, não teríamos editoras indo atrás de mangás no início dos anos 2000, com a vinda de vários mangás oficiais.
Imaginem que sem todas essas etapas, não teríamos bandas japonesas fazendo shows no Brasil, não teríamos apelo para um Anime Friends, e nem uma comunidade conectada e interessada em consumir cultura pop japonesa. Por isso é tão importante entender a criação do fandom no Japão e no mundo ocidental para explicar como os fãs são motor fundamental para que tudo funcione e continue crescendo.
Esse texto vai ter pitadas de história, nostalgia e muita informação pautada em fontes confiáveis e de autores renomados no campo cultural e de comunicação – que serão referenciados ao final do texto. Sentem-se em um local confortável para entender tudo isso com calma e atenção.
Sem mídia, não existe fandom!
Os mangás se tornaram uma febre no Japão na década de 1970, com um número significativo de publicações e recordes de cópias impressas e vendidas. É nessa época que veio Ashita no Joe, Rosa de Versalhes, Gen, Pés Descalços, Lobo Solitário e os clássicos mangás de Osamu Tezuka continuavam sendo criados.
Não é necessário se alongar tanto nesse ponto histórico, porque já falamos do nascimento dos mangás aqui no site. De forma resumida: os japoneses já tinham uma fascinação por tiras de quadrinhos antes mesmo da 2ª Guerra Mundial, e reconstruíram esse hábito após muita luta.
No entanto, o que diferenciou as comics de heróis norte-americanos dos mangás japoneses foi, não apenas o formato narrativo mais imaginativo e dinâmico dos mangás, mas também a inteligência das editoras de quadrinhos de propagar as histórias em plataformas diferentes. Mizuki Ito e outros estudiosos da cultura pop chamam esse processo de “mídia mix”.
A mídia mix japonesa é o que a gente já está acostumado a viver desde a época de Osamu Tezuka. Ao criar Astro Boy, Tezuka viu um grande potencial de tornar a obra em animação, chegando à televisão e passando em horários de grande audiência. Esse formato de venda facilitou que obras japonesas pudessem ser exportadas.
Desde então virou uma tradição no Japão criar adaptações de anime para obras em quadrinho que iam bem nas vendas. Assim, a partir da animação, era muito mais fácil também vender figures, produtos de decoração e escolares para crianças, entre outras formas de divulgar as obras.
Esse processo foi o pontapé inicial para que uma comunidade de fãs não ficasse nichada ou limitada a um único tipo de produto. Com a adaptação do animê, novos fãs conheciam as obras, e as vendas dos mangás aumentavam, dando várias possibilidades de criação e compartilhamento de gostos pessoais.
Com esse mercado criado e bem sucedido, era fácil replicar esse formato para outros gêneros e demografias. Não foi somente histórias como Astro Boy que teriam tamanho sucesso. Assim, o mercado japonês se viu extremamente diversificado internamente, com várias possibilidades de consumo.
Mas, e a internacionalização da cultura?
Nem tudo foi fácil para que o mangá fosse visto como um produto igualmente cultural como outras mídias, e o próprio Japão dificultou a propagação do mangá como uma mídia popular. Mas isso foi muito antes do Ocidente ter desconfianças e dúvidas se um quadrinho oriental daria certo em terras europeias ou norte-americanas.
Parte do grupo intelectual japonês repudiava o mangá como mídia de apoio cultural na década de 1950, quando mangás infantis e juvenis eram praticamente tudo que era publicado. As crianças ficavam grudadas nos mangás sobre robôs gigantes e aventuras dos protagonistas e só falavam disso, enquanto as escolas se preocupavam que essa mídia pudesse desviar a atenção para os estudos.
Enquanto muitos outros conhecimentos do Japão já estavam sendo assimilados pelo ocidente, como as lutas marciais, o budismo e xintoísmo, os quadrinhos passaram batido.
“[…] o mangá levou mais tempo para ser descoberto. Uma das razões é que os intelectuais educadores japoneses, talvez levados pelo espírito anti-quadrinhos da década de 1950 soprado dos Estados Unidos [lembrar do Macarthismo aqui], sentiam pouca inclinação em apresentar o mangá como um fruto legítimo e dinâmico da cultura japonesa”. (LUYTEN, p. 125, 1991).
Ainda que essas limitações existissem, era uma questão de tempo até que o mangá fosse adotado pela maioria, tamanha febre os japoneses mais jovens tinham com a mídia. Na década de 1970 foi quando os quadrinhos explodiram de vez com a sociedade nipônica, o que garantiu uma certa popularidade no Ocidente, principalmente em países como Alemanha, Itália, Espanha e Estados Unidos.
No entanto, havia inúmeras dúvidas de como esses países fariam para trazer conteúdos tão específicos dos japoneses para seus mercados internos. E aqui é bom lembrar que, majoritariamente, o mangá foi criado pelos japoneses para os japoneses. De primeira a ideia não era exportar esse tipo de cultura, e sim adaptar o que aprenderam com os quadrinhos ocidentais e adicionar marcas únicas e bem nipônicas, digamos assim.
“Ao contrário dos caros aparelhos de som e computadores japoneses, os mangás nunca foram concebidos para ser vendidos no exterior. Eles nasceram como histórias estilizadas e trabalhos artísticos feitos para os japoneses, culturalmente específicos e baseados em valores compartilhados, criados sem preocupação com possíveis respostas estrangeiras à sua abordagem do sexo, do cristianismo e de outras questões polêmicas.” (GRAVETT, p.156, 2004)
Exatamente por essas questões, mangás de comédia dificilmente seriam entendidos por um europeu, por exemplo, dado a tamanha localização da língua e da interpretação japonesa. E é um problema que ainda enfrentamos hoje. Gintama, por exemplo, é um mangá/anime que é difícil fazer uma adaptação que um brasileiro entenda todas as referências humorísticas. Mas, acima de tudo, o que importa primeiramente é os japoneses entenderem a obra, não o Ocidente.
“Uma das críticas que se faziam advém do fato de que os quadrinhos japoneses estariam por demais voltados para a vida social, cultural e econômica japonesas, e, por conseguinte, não conseguiriam atingir os não acostumados ao modus vivendi japonês.” (LUYTEN, p. 128, 1991)
Ainda assim, o interesse de jovens ao ver animações como Astro Boy, Mazinger Z e Cyborg 009 era muito grande do lado ocidental do mundo. Por conta desse fato, países europeus e os Estados Unidos abriram algumas brechas para que animações passassem nas TVs, pois era uma forma menos trabalhosa de adaptar uma mídia tão cultural para os cidadãos.
O que mais chamava atenção nos quadrinhos, no entanto, era o poder narrativo e dinâmico, bem diferente dos austeros quadrinhos de super-heróis da época. Os próprios japoneses mais jovens liam mangás em cerca de 20 minutos, praticamente comendo cada página das histórias.
Esse método ainda persiste e está presente numa série de obras que fizeram sucessos mundiais, como é o caso de Dragon Ball, Naruto, Slam Dunk e One Piece. A leitura lembra uma narrativa de filme, em que cada página, quadrinho e expressão de personagem contam. Apesar das dificuldades de trazer esses conteúdos para os não-japoneses, a procura e expectativa do fandom existiam.
Construção do fandom no Ocidente
Enquanto a indústria do mangá e animê voltava a crescer no Japão após 1950, no mundo os olhos não estavam voltados para o país, que ainda sofria com a miséria e as consequências terríveis da 2ª Guerra Mundial. Até os anos 70 o objetivo era reconstruir o país, e o crescimento econômico veio com rapidez.
Com isso, a indústria cultural teve mais condições de investir em artistas e no crescimento de publicações e produções. Internamente a mídia mix já estava tendo seu efeito, com sucessos das obras de Osamu Tezuka, Ryoko Ikeda e Shotaro Ishinomori, ascensão da produtora Toei Animation e da editora Kodansha.
Mas foi no fim da década de 1980 que tudo mudou e de forma muito drástica do Japão para o mundo. Os números de cópias vendidas e a quantidade de publicações do Japão em plena década de 80 pegou boa parte dos países ocidentais de surpresa. Mesmo com a dificuldade de inserção dos quadrinhos, pelo formato da leitura e de temas pertinentes apenas ao Japão, era um fenômeno a ser considerado. Então as tentativas finalmente tomaram corpo.
“O ano de 1987 marcou o início de grandes acordos entre editoras – por exemplo a First Comics de Chicago com as japonesas, difundindo a história de Lobo Solitário (Kozuke Okami), que já atingiu a quinta edição em pouco tempo, com 160 mil cópias vendidas [nos EUA].” (LUYTEN, p. 146, 1991).
Na mesma década, o Studio Ghibli lançou, em 1988, uma obra clássica e aclamada dos dias hoje, chamada Túmulo dos Vagalumes. Gen, Pés Descalços, mangá de 1973, chegou ao Ocidente na década seguinte através de 3 filmes e, com sua mensagem anti-guerra e antibélica, sensibilizou o mundo inteiro. Bom lembrar que essas obras faziam bem mais sucesso no Japão do que qualquer outra mídia ocidental. Os EUA não conseguiam ter sucesso absoluto com filmes da Disney e similares. Então, alguma coisa tinha que mudar.
“Seguindo os passos das pioneiras First e Eclipse, em 1988 a Marvel Comics causou sensação ao lançar Akira, de Katsuhiro Otomo. Ali estava um mangá que podia de fato atingir até mesmo a juventude ocidental em grande escala. […] Outro fator importante foi o de Akira ter sido recebido no Ocidente como parte da onda “cyberpunk” liderada por Neuromancer, romance de William Gibson de 1984. Na verdade, quando Otomo começou a publicar sua série na Young Magazine, em 1984, Otomo sequer tinha conhecimento do livro de Gibson, que só foi traduzido para o japonês em 1985.” (GRAVETT, p.159, 2004).
O que o Ocidente sabia sobre cultura pop japonesa
O que o Ocidente tinha até então eram animações bem específicas, transmitidas em TVs pagas, justamente pelos países verem na cultura japonesa algo mais de “2ª mão” ou “subcultural”. Muita coisa entre as décadas de 1950 e meados de 1980 só chegaram no Ocidente merecidamente no fim de 1980 e 1990.
Em 1990 a Internet também começou a dar seus primeiros passos na sociedade e não mais estava presa à campus universitários e órgãos de segurança dos EUA. Na mesma década, tecnologias como a fita VHS passaram a ser extremamente importantes para os entusiastas da cultura pop japonesa. Essa união entre esses dois fatores determinou o nascimento de uma comunidade otaku no Ocidente ativa e muito participativa.
Já não era possível barrar as trocas culturais que as sociedades pediam, pois elas aconteciam de forma alternativa (vulgo, pirata, mas não a forma moderna da pirataria). Antes disso, havia uma grande resistência por parte de governos e editoras, com medo das obras não vingarem e também por serem xenófobos e preconceituosos.
“Ironicamente, durante décadas foi quase impossível vender mangá no Ocidente. A xenofobia e o protecionismo comercial eram obviamente obstáculos significativos. Além disso, o mangá requeria dispendiosas modificações antes de poder ser vendido ao exterior.” (GRAVETT, p.156, 2004).
No entanto, os números só ficaram cada vez mais surreais de vendas no Japão. Além dos mangás e animações de vários formatos, tivemos obras aclamadíssimas, como Ghost in the Shell (1995) e Akira (1991), que marcou uma geração inteira, e influenciou diretores como as irmãs Wachowski, que criaram Matrix em 1999. (JENKINS, p 158., 2006)
Os videogames japoneses também passaram a ser fundamentais para o crescimento da indústria, com a Nintendo sendo a empresa mais importante do ramo na época. Culturalmente falando, não dava mais para adiar uma entrada massificada das obras japonesas ao ocidente.
“De acordo com uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Marubeni, as exportações de quadrinhos, filmes, arte e videogames japoneses cresceram 300% entre 1992 e 2002, enquanto outros setores exibiram um crescimento de apenas 15%.” (GRAVETT, p. 156, 2004).
Fandom e transmídia
Explicar conceitos mais atuais da absorção da cultura não é uma tarefa nada fácil. Autores¹ demoraram décadas e muitos anos de estudo para entender como que os usuários se comunicavam antes e depois da Internet. Antes de mais nada, pode ser claro para muita gente o significado de fandom, mas nem sempre entendemos o todo que forma um grupo de fãs.
“O fandom organizado é, talvez acima de tudo, uma instituição de teoria e crítica, um espaço semiestruturado onde interpretações concorrentes e avaliações de textos comuns são propostas, debatidas e negociadas e onde os leitores especulam quanto à natureza da mídia de massa e sua própria relação com ela” (JENKINS, p.100, 1992)
Como já explicado no texto, os quadrinhos, animações, games e outros produtos culturais japoneses foram criados no intuito de preencher os desejos e os anseios da própria sociedade nipônica. E o mercado surgiu antes mesmo da Internet. As fitas VHS surgiram antes da Internet. As câmeras fotográficas também, assim como o rádio e a televisão.
Foi na época da infância de adultos de 35 a 55 anos hoje que a cultura pop japonesa surgiu na televisão norte-americana. Não foi um fenômeno apenas dos norte-americanos, com a entrada de tokusatsus e animes como Cavaleiros do Zodíaco. O Brasil viveu isso com a falecida Manchete e marcou uma geração inteira, causando nostalgia que segue ainda nos dias de hoje.
Os sucessos de obras dessa época foram muito importantes para que o Japão percebesse o quanto suas obras podiam impactar outras sociedades, ainda que contasse com todas as dificuldades da língua e interpretações culturais. No entanto, era difícil mensurar a quantidade de usuários, consumidores e fãs que existiam do outro lado da Terra. Mas, o fandom já existia.
Foi com essas trocas entre países dessas mídias mais antigas que permitiu o nascimento da “cultura dos fãs”.
O que é cultura dos fãs?
De acordo com Henry Jenkins, autor que criou o conceito de “cultura da convergência”, cultura dos fãs é uma “cultura produzida por fãs e outros amadores para circulação na economia underground e que extrai da cultura comercial grande parte de seu conteúdo”. (JENKINS, p. 378, 2006)
Jenkins é um estudioso ferrenho da cultura pop e desde os primórdios da década de 70, com os fãs de Star Trek, ele vem analisando, estudando e meticulosamente coletando informações e acontecimentos fundamentais que impactaram a cultura pop nos EUA. E no meio desse grande estudo, ele também analisou a entrada da cultura pop japonesa no país.
Bom, para começar falando sobre a cultura dos fãs é preciso entender que muita coisa que circulava no Japão não circulava nos EUA. Porém, com a globalização da década de 1990 e o início da Internet, fãs que viram Astro Boy, Mazinger Z e Cyborg 009 na TV já estavam mais velhos e tinham mais domínio das tecnologias da década de 80 e 90.
Estudantes do MIT (Massachusetts Institute of Technology) sabiam como uma fita VHS funcionava, como as trocas de arquivos eram possíveis por meio de IRCs (Internet Relay Chat), como softwares podiam ser criados a partir de um ambiente virtual. Eles sabiam que era possível fazer uma gravação nas fitas VHS dos programas da TV paga e adicionar legendas, já que filmes como Akira foram legendados do japonês.
Assim, como os animês eram pouco difundidos e conhecidos ainda, foram esses grupos entusiastas da cultura pop japonesa que mantiveram o consumo vivo de forma mais abrangente, ainda que não fosse massificada como desenhos da Disney. O nascimento do fandom da cultura pop japonesa nos EUA se deu muito por conta dessas ações. A Europa também seguiu linhas próximas.
“Como explica o presidente do Anima Club do MIT, Sean Leonard, ‘a legenda de fã foi crucial para o crescimento do número de fãs de anime no mundo ocidental […]’. À medida que o custo baixou [de produção das legendas], a produção de legendas se espalhou, e os clubes passaram a utilizar a Internet para coordenar suas atividades, distribuindo as séries a serem legendadas e recorrendo a uma comunidade maior de tradutores”.² (JENKINS, p. 221, 2006).
Voltando à transmídia
A transmídia é uma área mais estudada em profissões como Rádio e TV, Cinema e Audiovisual, mas a área da comunicação como um todo acaba também vendo como o conceito de transmídia é importante nas últimas décadas.
Vocês se recordam no texto que foi citado que o Japão, logo no renascimento do mercado de quadrinhos, também conseguiu aliar a divulgação de grandes mangás com as adaptações em animês? Então, lá no início, até os anos 1990 esse conceito era visto como mídia mix. Mas logo esse formato evoluiu.
No Ocidente, um dos melhores exemplos de transmídia foi Matrix (1999), pois sua história não foi composta apenas pela trilogia de filmes, mas também por quadrinhos, animações, jogos de console e um jogo online. Cada uma das mídias explicava um pouco mais sobre o Universo e os acontecimentos CANÔNICOS da história. E aí que é o ponto importante: todas as obras alternativas do filme são consideradas partes essenciais da história.
Assim, a transmídia é um conceito um tanto complexo, mas é a tentativa de criar uma mídia (seja ela qual for da cultura pop) que seja tão expansiva que pareça um Universo vivo, com diversas possibilidades e que instiga cada vez mais o fandom a ir atrás das informações, resolver puzzles e achar pistas, criando teorias e cobrando por respostas.
“Uma história transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. […] Cada produto determinado é um ponto de acesso à franquia como um todo. A compreensão obtida por meio de diversas mídias sustenta uma profundidade de experiência que motiva mais consumo.” (JENKINS, p. 138, 2006)
O estudo da transmídia acabou acontecendo com bastante intensidade no Ocidente, mas se pararmos para pensar, o Japão fazia algo muito parecido com seus mangás. A transmídia não obriga que todas as mídias de uma franquia sejam interligadas e cânones, mas que tenham características próximas. Bom, como melhor representar esse conceito do que obras como Pokémon ou Yugi-Oh?
“A narrativa transmídia mais elaborada, até agora, talvez esteja nas franquias infantis, como Pokémon ou Yugi-Oh! Como explicam os professores de pedagogia David Buckingham e Julian Sefton-Green, ‘Pokémon é algo que você faz, não algo que você apenas lê, vê ou consome’. Existem centenas de pokémons diferentes, cada um com múltiplas formas evolucionárias e um complexo conjunto de rivalidade e afetos. Não existe um texto único em que se possam obter informações sobre as várias espécies; em vez disso, a criança reúne seu conhecimento sobre Pokémon a partir de diversas mídias, e o resultado é que cada criança sabe alguma coisa que seus amigos não sabem e, portanto, tem a chance de compartilhar sua expertise com outros”. (JENKINS, p. 184, 2006)
Ainda que Jenkins considere as duas franquias para crianças, isso já é bem ultrapassado para os dias de hoje. Pokémon GO e os novos jogos para consoles diferentes da franquia agradam uma grande comunidade adulta, que saem nas ruas e se juntam em eventos e em busca de pokémons. Além disso, há campeonatos de card games oficiais e para passatempo de jovens de várias idades, filmes, museus, lojas, mangás mais uma série de produtos de decoração e de colecionador.
Hoje ainda podemos citar Dragon Ball e seus diversos jogos, filmes, temporadas de animê e o mangá. One Piece também é uma obra expansiva, que não fica apenas no mangá, mas é explorado em jogos, light novels e filmes, os dois últimos com participação direta do autor Eiichiro Oda. O Japão hoje é um dos países que mais praticam a transmídia, utilizando o conceito para que os fãs busquem mais, se apeguem mais e compartilhem mais.
É claro que nem tudo é um paraíso. Tanto a mídia mix quanto a transmídia fazem parte de um pacote mercadológico em busca de lucro e popularidade. Nenhum dos exemplos fogem das fortes motivações econômicas. Por isso nem sempre a transmídia também tem sucesso.
Se os fãs percebem que estão sendo passados para trás e estão sendo muito explorados financeiramente falando, as empresas responsáveis terão de arcar com as inúmeras reclamações e ataques virtuais. E nem sempre os grandes conglomerados saem vitoriosos.
Mas é importante perceberem que esse formato japonês de divulgação e venda da cultura pop ajudou bastante para que o próprio Ocidente se reformasse nas questões culturais e de entretenimento. No início dos anos 2000 o Japão e outros países asiáticos, como Taiwan e Coreia do Sul, eram grandes referências na produção de materiais midiáticos diversos.
“Muitos dos desenhos animados exibidos na televisão norte-americana são feitos na Ásia (cada vez mais na Coreia), muitas vezes apenas com uma supervisão limitada das empresas ocidentais. Muitas crianças ocidentais hoje, estão mais familiarizadas com personagens da série japonesa Pokémon do que com personagens de contos de fadas europeus, de autoria dos Irmãos Grimm ou de Hans Christian Andersen³”. (JENKINS, p. 152, 2006)
Além disso, as comunidades otaku preexistentes antes mesmo das febres como Pokémon, ajudaram todo o Ocidente se acostumar e se adequar ao modo de leitura de trás pra frente, e com a presença de onomatopeias e termos bastante japoneses. Assim, as editoras que antes tinham dúvidas se traziam ou não os mangás, passaram a comprar os direitos e fazer adaptações bem menores do que pensavam décadas antes.
“A TokyoPop, fundada em 1996, assumiu a liderança publicando mangás diretamente como livros, astutamente usando as mesmas proporções de um DVD, de modo que os livros pudessem ser colocados nas prateleiras ao lado de suas versões em animê. Desde 2003, a Viz e a maioria das outras [editoras] têm seguido esse procedimento”. (GRAVETT, p. 160, 2004)
A cultura participativa e o Brasil
Explicar e contextualizar todas essas questões foi importante para que você, leitor, entenda o quanto a cultura pop japonesa mudou e foi exportada e como os primeiros passos para que o Ocidente visse e respeitasse essas mídias foram fundamentais para que o Brasil, um país ainda emergente, também olhasse para as obras com respeito e interesse.
As décadas de 1980 o Brasil ainda enfrentava uma dura realidade econômica, com a inflação chegando a números surreais, e a moeda brasileira perdendo a força. Além disso, a transição da ditadura para o campo democrático foi duro, trazendo crises políticas internas complicadas. Só em 1989 que tivemos a primeira eleição aberta para a população, após 21 anos de ditadura.
Nesse contexto brasileiro, 1980 também foi a década em que redes de televisão cresceram com seus programas de entretenimento. E foi daí que a Manchete viu a oportunidade de importar algumas animações e tokusatsus japoneses para a TV aberta. Como os EUA já estavam recebendo algumas mídias na TV paga, assim como a Europa com o sucesso de Saint Seiya, era a vez do Brasil testar.
Sem todas as histórias que passaram na Manchete, não teríamos o reconhecimento de que os programas traziam audiência. Assim, outras redes de televisão, após a Manchete fechar as portas, abriram espaço nos anos seguintes. Aí que tivemos SBT, Globo, Play TV, Record, RedeTV e Band nas outras 2 décadas fechando horários apenas para animes. Na TV paga também tivemos animações japonesas que ainda remontam o imaginário e as lembranças de homens e mulheres adultos hoje.
Mas, não foram apenas os programas de TV que o Brasil viu oportunidade. O país também possui ainda hoje a maior comunidade japonesa fora do Japão, advinda da Imigração, e que se estabeleceram no país. As comunidades japonesas foram cruciais para manter uma ligação cultural potente e que de alguma forma refletiu nos brasileiros.
Mangás originais japoneses eram pedidos pelos próprios japoneses que moravam nos arredores do bairro da Liberdade, em São Paulo. Assim como outras partes do Brasil. Pela dificuldade de trazer quantidades significativas de produtos da literatura, os mangás eram mais fáceis de trazer e também mais fáceis de ler.
“Se analisarmos os mangás dentro do contexto e das circunstâncias em que viviam os imigrantes e as gerações de descendentes, constatamos que eles tiveram um papel importante na manutenção da língua. […] Outra função do mangá foi (e é) a de manter a língua coloquial viva para os que estavam (e estão) fora do Japão. Os quadrinhos, em geral, são caracterizados pela inclusão de gírias, termos correntes usados pelo povo, linguagem informal e, no caso japonês, principalmente após a Segunda Guerra, grande parte de palavras de origem inglesa foram incorporados ao vocabulário”. (LUYTEN, p. 151, 1991)
O Brasil não foi um país em que as primeiras tecnologias, como a Internet e as redes de computadores, foram bastante distribuídas. Por aqui apenas famílias mais elitistas e com mais poder aquisitivo podiam ter certos aparelhos. Por isso, as trocas de VHS e posteriormente os IRCs demoraram um pouco mais para serem usados com mais força se comparado com os EUA, mas ainda assim o fenômeno existiu.
No entanto, foi mesmo com redes sociais como o Orkut que a área teve ainda mais espaço e alcance. E que a cultura participativa enfim foi apresentável.
E o que é cultura participativa?
Bom, no meio teórico cultural também há conceitos e definições cunhados por estudiosos. E a cultura participativa é mais uma delas. Segundo Henry Jenkins, a cultura participativa é uma “cultura em que fãs e outros consumidores são convidados a participar ativamente da criação e da circulação de novos conteúdos”. (JENKINS, p. 378, 2006)
Para explicar esse conceito é importante dizer que o consumo da cultura pop japonesa não se resume somente por assistir ou ler mídias japonesas. Ainda que esses consumos sejam os mais atraentes e importantes, as comunidades criaram formatos muito mais abrangentes, principalmente com o uso da Internet para trocar informações e compartilhar gostos, mesmo os usuários estando longe uns dos outros.
“O fluxo de bens asiáticos no mercado ocidental foi moldado por duas forças concorrentes: a convergência corporativa, promovida pelas indústrias midiáticas, e a convergência alternativa, promovida por comunidades de fãs e populações de imigrantes.” (JENKINS, p. 153, 2006)
A convergência alternativa criada pelos fãs no início do século XXI no Brasil é vista ainda nos dias de hoje, com a criação de fanfics, cosplays, fanarts, programas de conteúdos, como canais do YouTube e podcasts, e outras formas ainda mais alternativas (há quem cria jogos piratas, fazem campanhas de RPG temático, lançam fanzines etc).
A soma de todas essas atividades hoje formam o conceito da cultura de participação. São formas que os autores e produtores originais japoneses não sabem com detalhes, no máximo apenas sabem que existem. São formas bem mais difíceis de quantificar, mas a quantidade de fãs que estão participando são todos considerados do fandom.
Muito se discute nas redes sociais, podcasts e palestras nos eventos de anime, que é difícil trazer certos materiais oficiais pois o meio alternativo já está muito forte e é difícil saber se tal material oficial vai realmente vender. Então, as corporações empresariais concorrem diretamente com as corporações alternativas.
É como se a JBC falasse numa palestra que é impossível trazer um mangá de esporte, pois os sites piratas já estão aí há mais tempo trazendo os conteúdos com facilidade, e os usuários não precisam pagar por isso. Já vivemos uma realidade em que houve cosplayers criando fantasias de personagens famosos de obras que nunca chegaram no Brasil por meios oficiais.
Ao contrário de países que estabeleceram uma comunidade alternativa participativa, mas que também consumia os produtos oficiais, o Brasil possuí uma escassez absurda de uma comunidade consumidora sólida. Esse problema não é simplesmente das editoras (ainda que elas possam melhorar) e nem somente da comunidade (que também pode ter mais consciência). E é por isso que esse tema tem que ser mais articulado.
Por enquanto é importante entender que o fandom é um grupo grande, heterogêneo, ou seja, os fãs não são unânimes em assuntos e nem têm as mesmas crenças. No entanto estão no mesmo ambiente por gostarem das mesmas coisas. Isso quer dizer que um consumidor que faz parte do fandom não é, necessariamente, um gênio e sabedor da mídia que gosta. E nem que ele entendeu 100% das coisas que a obra quis passar (O Jenkins também explica bem isso em seus livros).
O fandom é importante justamente por ele ser algo generalista. Ele quantifica muito bem quanto uma comunidade é participativa (para o bem e para o mal). Entender essa comunidade não é algo simples, é preciso de dados e informações sólidas. No entanto, quanto mais as corporações empresariais entenderem as comunidades alternativas, mais fácil serão as trocas comerciais e cooperativas.
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¹: Para mais proveitosos conhecimentos sobre cultura+comunidade+ambiente virtual, recomendo os autores: Pierre Lévy, Manuel Castells, Henry Jenkins, Joshua Green, Sam Ford e Clay Shirky.
²: O assunto é bastante extenso, mas é desenvolvido no trecho “Quando a Pirataria se transforma em Promoção” (p.218 a 224) do livro “Cultura da Convergência”, de Henry Jenkins.
³: Vale a leitura do texto de 2002 de Shekhar Kapur, “The Asian are coming”, no The Guardian: https://www.theguardian.com/film/2002/aug/23/artsfeatures1
Referências Bibliográficas
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo, 2ª Edição, Editora Aleph, 2009. (originalmente publicado em 2006)
JENKINS, Henry. Invasores do Texto. São Paulo, Marsupial Editora, 2015. (originalmente publicado em 1992)
GRAVETT, Paul. Mangá – Como o Japão reinventou os quadrinhos. São Paulo, Conrad Editora, 2006. (originalmente publicado em 2004)
LUYTEN, Sonia Bide. Mangá – O poder dos quadrinhos japoneses. 3ª Edição, Editora Hedra, 2011. (1ª edição publicada em 1991)