Em discussões recentes de várias naturezas no meio otaku, o debate político por vezes se aflora, e não de forma positiva, mas sim um antro de ofensas e ataques sem nenhum embasamento. As mídias sociais ainda ajudam a mensagem não ser entendida como deveria, ou simplesmente não ser completa o bastante para ter uma linha de raciocínio em sua totalidade.

Essas discussões acontecem em vários assuntos possíveis, desde tipo de papel, preços dos mangás, crescimento das editoras, sagas de histórias icônicas, como One Piece, Naruto, Kimetsu no Yaiba e polêmicas que rendem virais nas mídias sociais. 

Por exemplo, a comunidade se revoltou com a discussão sobre a melhor cor de papel para os mangás nacionais, debate este que envolveu até os profissionais da área no Brasil, como Cassius Medauar, Leonardo “Kitsune” e Thiago Nojiri. E além do assunto papel, as discussões saíram do campo gráfico e entraram em assuntos sociais. 

Sem contar nas incontáveis discussões sobre a objetificação de personagens em Nanatsu no Taizai, ecchi desnecessário em animês e mangás, autoritarismo em todos os lados de Shingeki no Kyojin e as problemáticas de Tate no Yuusha. Discussões essas que são cansativas e, muitas vezes, infrutíferas. 

Portanto, após tantas exemplificações que ocorreram em 2019, esse texto se tornou uma necessidade. Não apenas para explicar os conceitos de política, mas também para tornar o debate mais palatável e acessível a todos. Afinal, quando falamos de política nos animês e mangás, onde se quer chegar com isso tudo? 

O tema é muito amplo e cheio de nuances, caminhos e interpretações. No entanto, normalmente quando qualquer influencer ou alguém da comunidade fala em “política nos animês e mangás” a ideia é mal vista em várias instâncias, desde jovens adolescentes, até otakus mais velhos. O assunto é um verdadeiro tabu. E por quê? Bom, temos alguns achismos: 

  • O ambiente político nacional não é dos melhores, e sim bem radical (há inúmeras evidências para isso¹, mas o assunto não tem como ser esticado neste texto);
  • A polarização (não partidária e sim da sociedade) dificulta bastante a comunicação entre as partes (o que também não quer dizer que é uma divisão 50% e 50% para cada lado) ;
  • A politização no Brasil é um processo muito complicado, o que traz mais opiniões sem embasamento, do que de fato discussões construtivas e pautadas em observações factuais.

Todo esse cenário acaba tornando o assunto muito malquisto, a ponto de nem conseguirmos estabelecer linhas simples para discutir política+entretenimento. Pelo tema ser extenso e complexo, vamos dividir este artigo em 3 partes. A primeira sobre conceito de política, nascimento e crescimento dos mangás e animês no Japão e como as histórias se fundem com política em algum nível

A segunda tratará diversos causos de mangás/animês que foram importantíssimos socialmente e que foram calcados em vários conceitos políticos no pós-guerra (1950 em diante). Nesta lista há muitas produções clássicas no Japão e no mundo e que valem ser citadas.

E, por fim, a terceira parte tratará dos animês e mangás no século XXI, em uma geração bem mais tecnológica e moderna, em uma outra realidade histórica e política em comparação com o século passado. E, mesmo em uma geração diferente, ainda assuntos diretamente políticos são discutidos, além de várias mensagens em subtexto.  

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Eu não duvido que as reflexões acerca de Shingeki nas mídias sociais tentem ignorar ao máximo os temas políticos que a história trata.

Então, vamos começar do começo.

O que política tem a ver com animê e mangá?

A primeira coisa que é preciso então conceituar: o que é política? O termo é subjetivo e é fundamentado em vários aspectos de uma sociedade. Por isso que é comum estudarmos ciência política em algum momento da nossa vida. Esse texto não tem a intenção de ser didático o bastante do ponto de vista acadêmico, é mais um resumão para contextualizar os leitores.

Sua definição vem desde o entendimento de teóricos acerca de “comunidade”. A partir de uma religião similar e a necessidade da vida em grupos (pequenos ou de milhões de pessoas), estabeleceu-se a ideia de “governo da cidade”. Ao formar uma sociedade, mesmo que pequena, se viu a necessidade de criar normas sociais, administrativas e de direitos. 

Discutida mesmo Antes de Cristo, a política moldou pensamentos, sociedades e normas que nos tornaram o que somos hoje como cidadãos. E desde então, muitos temas foram levantados por figuras historicamente conhecidas, como Platão, Aristóteles, Nietzsche, Emmanuel Kant, Max Webber, Michel Foucault, Hobbes, Rousseau, Maquiavel, Karl Marx, Lênin, Stuart Mills, John Locke, Tocqueville e assim por diante. Todos focados em sistemas políticos, econômicos e de direitos dos cidadãos. 

São tantos nomes, tantos discursos e perspectivas, que a política se tornou ampla o bastante para permear tudo que somos e fazemos em nossa vida. Algo tão complexo assim possui até uma área acadêmica e profissional: as Ciências Políticas. Viram que é algo bem extenso e que tem a ver com diversas áreas do saber? 

Aristóteles mesmo dizia que o homem é um animal político quando entendido como cidadão e que faz escolhas para melhoria de sua comunidade e grupo. Mesmo crianças e idosos, não possuindo suas responsabilidades como cidadãos, faziam parte da comunidade, que em sua totalidade se organizava através da política. 

Em outra geração (da metade para o final do século XX) temos Foucault, que tenta desmistificar toda a noção de política e poder, questionando as decisões do Estado, indivíduo e toda a subjetividade que paira a política. Aos olhos dele, por exemplo, qualquer autor (não importa qual arte aqui) tem em si sua subjetividade política, foi moldado por um discurso, por relações individuais que construíram, mesmo que inconscientemente, uma forma de ser e se portar.

Assim sendo, tudo que é criado, tem em sua base a política. Mesmo que inconscientemente. A política se tornou algo muito maior do que o Estado de direito, o Governo, os políticos, Congresso e eleições. A cada década, as teorias políticas abrangem cada vez mais condições comportamentais e sociais, e menos práticas, como era antigamente na Grécia ou mesmo em estados absolutistas. 

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Esse foi Michel Foucault, um estudioso francês utilizado em várias linhas científicas.

Nessa perspectiva, uma criação cultural (mangá), que se tornou um aspecto cultural de uma sociedade (mercado literário de mangá), está totalmente ligada à política. 

O surgimento dos mangás 

Para entendermos melhor até onde a política vai, é fundamental falarmos das questões históricas sobre as duas mídias (mangá e animê). Elas surgiram em épocas diferentes, mas ambas trazem vários aspectos do Japão, e que demonstram o impacto de decisões de governo nas duas mídias. 

Se estudarmos também o nascimento e a construção do cinema e da literatura (contos, narrativas e romances), todos os impactos do governo japonês também são importantíssimos para falar sobre os respectivos mercados. É apenas uma forma de dizer que os mangás e animês não são exceção. Toda a construção da cultura pop japonesa tem ligação direta com escolhas e linhas político-filosóficas. 

Sendo assim, o mangá ainda no século XIX era bem diferente do que entendemos hoje como “mangá moderno”. Katsushika Hokusai foi o autor a cunhar o termo “mangá”, em 1814, em uma época que as histórias em quadrinhos eram chamadas de “ukiyo-e”, que eram “gravuras coloridas impressas a partir de blocos de madeira finamente entalhados com as mãos, com desenhos estilizados, que na época eram vistos como arte” (SATO, 2007, p. 58).

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Essa arte é um exemplo do que era ukiyo-e

Hokusai usou o termo mangá quando criou uma coleção de desenhos humorísticos caricatos sobre diversos assuntos. A coleção ficou conhecida como “Hokusai Mangá”, e durou até 1878, e passou por outras mãos além de Hokusai, que morreu em 1849. 

No entanto, apenas por volta da década de 1850 que o termo mangá começou a ser visualizado como uma forma de expressar imagens em uma narrativa, em quadros e desenhos com perspectiva, sombra e anatomia. E essa evolução não ocorreu de primeira pelas mãos de japoneses, e sim de europeus. E por quê? 

Meados do século XIX, o Japão estava na Era Edo, em uma crise política com o fim do Xogunato. Para se sustentar e manter mais controle do próprio país, o Japão abriu seus portos (a contragosto, é bom salientar) a outros países após 200 anos de isolamento comercial e cultural com o restante do mundo. “O primeiro a forçar uma parceria comercial foram os Estados Unidos“. (GRAVETT, 2006, p. 14)

Já a primeira figura a trazer novos conceitos para o mangá foi Charles Wirgman, um inglês que chegou ao Japão em 1857 e residiu em Yokohama desde então. Em 1862 ele criou a Japan Punch, a primeira revista de humor no estilo ocidental no Japão (SATO, 2007, p.59). A revista foi muito bem recebida, o que obrigou Wirgman a traduzir suas obras para o japonês.

Em 1868 iniciou a Era Meiji, que durou até 1912. Algumas décadas depois foi a vez de George Bigot, um francês que chegou já no Japão na Era Meiji, em 1882. O Japão nessa época voltou a ter um imperador, mas com o objetivo de trazer mais aspectos ocidentais para o país. 

“Quando o imperador foi reconduzido ao trono, em 1868, defendeu a ‘busca de conhecimento em todo mundo para fortalecer o país’. Dessa forma, já que os japoneses não podiam mais evitá-lo (o contato cultural e comercial com o resto do mundo), o contato com o mundo exterior seria ao menos feito em seus próprios termos, como parte de seu dever patriótico para tornar a nação mais forte” (GRAVETT, 2006, p. 14)

Voltando ao Bigot, o artista criou, em 1887, a revista Tôbaé, focado em sátiras políticas (olha a política chegando aí). A crítica contra o governo era algo estritamente proibido no Japão até então, pois na época dos shoguns (“xoguns” também é válido no português) era comum que uma crítica fosse motivo para exílio ou execução sumária.

A revista Tôbaé foi muito importante para trazer o sentimento de que os japoneses podiam criticar e criar humor contra as políticas de Estado da Era Meiji, e que o Xogunato tinha acabado de vez. 

O que não extinguiu a perseguição à artistas que falavam mal do Governo de alguma forma, principalmente criando sátiras, mas ao menos não eram mais executados. 

Primeiro mangá e mangaká japonês

A influência de Tôbaé foi tão forte na época que o primeiro japonês a investir em mangá e criar a nova era do mangá na época (com os conceitos ocidentais que aprenderam) foi Rakuten Kitagawa (Kitazawa em algumas fontes) que criou o mangá propriamente entendido hoje como “histórias em quadrinhos”, o Tagosaku to Mokubee no Tokyo Kenbutsu (Tagosaku e Mokube Passeiam em Tóquio). 

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Os primeiros quadrinhos na Tokyo Puck, de Rakuten Kitagawa

O mangá de Rakuten foi publicado em 1902, na revista Jiji Mangá, e conta a história de dois camponeses que se deparam com as novidades da cidade grande. E o autor não parou por aí. Em 1905 ele criou a própria revista em cores de quadrinhos e charges políticas (mais uma vez ela aí), conhecida como Tokyo Puck

“Ao longo dos anos, a Tokyo Puck se tornaria a revista de quadrinhos e ilustrações mais influente do país, atraindo novos desenhistas e atingindo uma circulação de 100 mil exemplares, o que tornou Kitagawa rico. Em 1929, após uma exposição de seus trabalhos em Paris, Kitagawa foi condecorado pelo governo francês, tornando-se também o primeiro mangaká a ser reconhecido internacionalmente” (SATO, 2007, p.60)

Foram longos anos de ascensão dos quadrinhos, cada vez mais evoluindo e atraindo centenas de pessoas. No entanto, tudo mudou em 1933. Dessa vez por conta da guerra Sino-Japonesa e, posteriormente, da 2ª Guerra Mundial. Até 1932 o Japão recebeu vários materiais ocidentais, como Betty Boop, Mickey e Popeye, e o ambiente era bem liberal na época, trazendo boa evolução para os mangás. 

Em 1933 o Japão militarista impôs aos quadrinhos (incluindo os mangás) grande censura e controle, proibindo os personagens ocidentais. A medida foi chamada de “Lei da Preservação da Paz”, que de pacífica não tinha nada e era conhecida popularmente por “Lei Perversa”. A lei legalizou a intimidação a diversos mangakás e desenhistas, que foram presos e perseguidos no regime. 

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Uma das capas da Tokyo Puck. Créditos: Nerdbully

Nessa época, era impossível publicar algo no Japão que não fosse aprovado pela Associação de Desenhistas de Quadrinhos do Sagrado Japão (Shin Nippon Mangaka Kyõkai). Lembram de algo parecido na Alemanha Nazista, nos EUA Macartista e a Ditadura Militar no Brasil? Pois é, aconteceu também no Japão. 

Quando o país se aproximou mais da 2ª Guerra Mundial, em 1940, as criações em quadrinhos eram usados para propaganda militarista, ainda com a dura censura de outros tipos de criações. Nesta época alguns quadrinistas tentaram sobreviver, se reinventando para não serem presos. Foi o caso de Keizo Shimada, autor de Boken Dankichi (1933-1939) e Suiho Tagawa, criador de Norakuro (1931). 

Não apenas os mangás, mas as animações foram também prejudicadas, mesmo que fizessem parte de uma indústria menor na época. 

História das animações no Japão

Os desenhos animados foram comercialmente consumidos pela primeira vez em 1909, quando os cinemas locais começaram a transmitir produções de Paris e Nova Iorque. Assim um mercado regional começou a nascer, no entanto ainda em caráter bastante experimental. Era tanto que os animês não eram chamados de animês. 

“Nem sempre os japoneses usaram a palavra animê como sinônimo de animação. Até o fim da 2ª Guerra, palavras em línguas estrangeiras raramente faziam parte do vocabulário cotidiano. Primeiro, porque habitualmente os japoneses preferiam usar expressões do próprio idioma, e segundo porque o governo militar proibia o ensino e o uso de idiomas estrangeiros no ensino público, principalmente o inglês e o russo. Assim, os desenhos animados eram chamados de dõga (imagem ou desenho que se move) ou de mangá eiga (filme de quadrinhos). Apenas no pós-guerra, a partir da década de 1950 a expressão animê passou a ser usada no Japão.” (SATO, 2007,  p. 31)

Aos que não conhecem o termo, animê significa animação em japonês. É a forma contraída pela qual os japoneses escrevem a palavra animação em inglês (animation-animeeshon). Hoje é um dos principais ramos da indústria japonesa e o principal meio de exportação cultural do Japão para o mundo. 

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Heidi foi uma das primeiras animações de Hayao Miyazaki com Isao Takahata, uma série de animê colorido baseado no livro infantil suiço de mesmo nome para a produtora Zuiyo, em 1973.

Assim como os mangás, a partir do governo militarista, os animês se tornaram ferramenta pró-guerra, sendo usados para propaganda. Na mesma época, qualquer mídia estadunidense foi proibida de ser transmitida, desde desenhos animados, até peças teatrais e filmes. 

O pós-guerra – renascimento do animê e o mangá moderno

O Japão demorou alguns anos para retomar o mercado criativo de mangás e animações, que foi destruído no período militarista japonês (1933-1945). Com o fim da 2ª Guerra, o Japão ainda estava preso criativamente falando pelos EUA, que não apenas fizeram bases e nortearam a política governamental japonesa por alguns anos, mas também proibiam que as mídias japonesas fossem exportadas para os norte-americanos. Vamos explicar isso por etapas. 

Os quadrinhos norte-americanos voltaram a circular no Japão pós-guerra, no entanto, o país nipônico estava diante de escassez de recursos e pobreza extrema. Foi uma época de reconstrução das cinzas do país. Ainda com problemas estruturais, os japoneses voltaram a criar suas histórias ainda em 1946, inspirados nas cores das comics estadunidenses e na esperança de retomar aquilo que perderam.

“Desse período destaca-se Machiko Hasegawa, a primeira mulher a alcançar sucesso no mangá, autora de Sazae-san. Quando Sazae-san começou a aparecer no jornal Asahi Shinbun em 1946, Hasegawa tinha apenas 26 anos, era dona de casa e desenhava nas horas vagas.” (SATO, 2007,  p.61).

A história de Sazae-san foi adaptada para animê em 1969 e ainda é exibido no Japão, sendo considerado o anime mais longo do mundo. Em 2019 recebeu um live-action especial em comemoração aos 50 anos de vida da série. Bom, desde lá os mangás influenciam diretamente os programas de TV e produções de cinema. 

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Sazae-san é considerado um clássico por falar abertamente da vida de uma família japonesa de classe média

No mesmo ano do mangá de Sazae-san conhecemos o que foi chamado de “Deus do mangá”, Osamu Tezuka, que publicou Shin Takarajima, considerado o primeiro mangá moderno, misturando conceitos de storyboard e narrativas cinematográficas para os quadrinhos. A história contou as aventuras do menino Pete, que usa seu carro veloz para chegar à sua Ilha do Tesouro

Assim, a partir de 1950 o mangá cresceu culturalmente na sociedade e economicamente no Japão, mostrando grande diversificação de categorias e gêneros. Essa divisão de grupos e faixa-etárias foi criada pela editora Kodansha, que foi fundada em 1909 pelo editor Seiji Soma, com o nome de Dai Nippon Yuuben Kai (Sociedade Oratória do Grande Japão). Apenas entre 1914-1926 a editora lançou algumas revistas para públicos diferentes, sendo eles: 

  • Shonen Kurabu (Clube dos Meninos)
  • Shojo Kurabu (Clube da Meninas)
  • Yonen Kurabu (Clube das Crianças)

“Antes da 2ª Guerra essas revistas chegaram a ter tiragens fantásticas (só a edição de janeiro de 1931 da Yonen Kurabu vendeu 950 mil exemplares) o que na época fez da Kodansha a maior editora de revistas da Ásia. Estas três revistas desapareceram na década de 1960, quando foram substituídas por novas publicações totalmente dedicadas a quadrinhos de periodicidade semanal.” (SATO, 2007, p. 62)

Mas foi com o Tezuka que tivemos a expansão das animações na TV, quando, ao fazer fama nos mangás, e com muito planejamento financeiro, abriu a própria produtora: Mushi Production. Criou então o anime de maior sucesso da década de 1960: Astro Boy (1963). A partir daqui a gente já sabe mais ou menos tudo que aconteceu.

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Astro Boy é uma verdadeira obra de arte para sua época e que influenciou uma geração japonesa inteira.

“[…] Tezuka obteve enorme sucesso instântaneo elaborando um esquema no qual a indústria do animê para TV hoje se fundamenta. (SATO, 2007, p.34)

A partir dele, muitos outros ilustradores de mangá foram colaborando com Tezuka e também produtoras criando outras histórias. Foi o caso da Toei Animation, que surgiu após 1950, mas só depois de ver o sucesso de Astro Boy com a produtora de Tezuka, começou a se arriscar mais para fazer animações para a TV e não parou mais. Alguns títulos importantes da Toei do século XX:

  • Cyborg 009 (1968)
  •  Mazinger Z (1972)
  • Candy Candy (1976)
  • Kinnikuman (Músculo Total – 1983)
  • Saint Seiya – Os Cavaleiros do Zodíaco (1986)
  • Dragon Ball (1989)
  • Sailor Moon (1992)
  • Digimon Adventure (1999)

O Macartismo nos EUA

Não foi apenas o Japão que sofreu com censura e perseguição nos anos de chumbo, mas os EUA na entrada da Guerra Fria criou uma máquina de censura e uma “política de governo para ascensão da cultura moralista” para os quadrinhos, produzindo uma época que reverbera ainda hoje no Ocidente: de que quadrinhos são majoritariamente para crianças. 

Tudo começou com Frederic Wertham, autor do livro “Sedução dos Inocentes”, feito em 1940. O autor condenava as HQs, dizendo que elas eram “perniciosas às crianças, à família e à sociedade” (as semelhanças com o caso da Bienal do Livro do RJ não são meras coincidências). 

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Essa HQ jamais seria publicada nas décadas de 1940 até início de 1960. No entanto que só veio depois dos anos 2000.

“O livro teria passado em branco se não fosse usado nos anos 1950 pelo Macartismo² para perseguir autores e impor o comics code à atividade, gerando uma onda moralista que retardou a evolução dos quadrinhos nos Estados Unidos e reduziu sobremaneira o mercado […]”. (SATO, 2007, p.63).

É importante lembrar que os EUA tiveram grande influência no Japão pós-guerra, com suas bases do exército e grande participação econômica e cultural na vida dos japoneses. Termos em inglês começaram a fazer parte do idioma nipônico, assim como hábitos e comportamentos ocidentais passaram a ser mais absorvidos. 

Sendo assim, teve uma pressão bem grande para que os mangás passassem pelo pente fino da análise macartista, mas não foi o bastante para que internamente as editoras permitissem que essa onda moralista tomasse conta novamente dos mangás. Assim, o Japão foi um país com um ambiente bem mais liberal e progressista, com criações que foram proibidas nos EUA pela visão “subversiva” que tinham. 

A parceria comercial da cultura pop japonesa com o mundo Ocidental foi melhorando após a onda Macartista esfriar de vez, lá para década de 1960.

“A animação japonesa já era exportada ao mercado ocidental desde os anos 1960, quando Astro Boy  (1963), Speed Racer  (1967) e Gigantor  (1965) chegaram às TVs norte-americanas.” (JENKINS, 2006, p. 219)

Porém, os EUA dificultaram bastante a vida das mídias japonesas, que só tiveram mais chances com a estréia de Pokémon e Yugi-oh, no final da década de 1990, e a criação de cópias em vídeo (VHS e posteriormente CD) dos filmes do Studio Ghibli, em 1996, com parceria comercial da Buena Vista International.

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Cyborg 009 foi tão influente que ainda recebe remake e é discutido nos dias de hoje.

“No final dos anos 1960, entretanto, iniciativas de reformas na televisão […] fizeram ameaças de boicotes e legislação federal para controlar o conteúdo considerado inadequado para as crianças [norte-]americanas. […] Distribuidores japoneses foram desestimulados e retiraram-se do mercado americano […].” (JENKINS, 2006, p. 219)

Ao contrário dos EUA, o Japão reforçou a importância cultural dos mangás no país e ampliou o mercado para todos os públicos possíveis, de crianças à idosos. Assim, os quadrinhos são vistos como uma literatura séria no Japão, de mesmo peso que qualquer outra arte, como teatro, cinema e livros. 

Isso é tão verdadeiro, que os mangás passaram a ser materiais escolares e de ensino. 

“No Japão o ensino de história nas escolas é baseado numa coleção de 20 livros em mangá da editora Shogakukan, a Nippon no Rekishi (História do Japão). Best sellers como “Made in Japan” escrito pelo ex-presidente da Sony, Akio Morita, tem uma versão em quadrinhos. Nippon Keizai (Economia Japonesa) é um livro em mangá que explica a complexa estrutura da economia japonesa, desenhado por Shotaro Ishinomori (Cyborg 009), famoso mangaká e roteirista de TV e cinema.” (SATO, 2007, p. 64)

Da 2ª Guerra até 1995, o Instituto de Pesquisas Editoriais do Japão estimou que já haviam sido publicados 2,3 bilhões de mangás no país. Está mais que provado que o mercado de quadrinhos conquistou todos os japoneses e hoje é uma indústria enorme e que movimenta parte da economia do país. 

Conclusão 

Todas essas questões políticas de séculos moldaram o que os mangás e animês são hoje, mas não impactaram apenas a indústria, como as produtoras, editoras, diretores e mangakás. O texto focou principalmente na parte histórica de como essas duas mídias nasceram e cresceram no século XX. 

No entanto, as primeiras décadas pós-guerra foi uma época de bastante cunho político nos mangás e animês, com o lançamento de Cyborg 009 (1968), Ashita no Joe (1970), Rosa de Versalhes (1972), Pikadon (1978) e Gen, Pés Descalços (1978). Da década de 1980 as produções sobre distopias, futuristas e políticas não pararam e tivemos Nausicäa do Vale dos Ventos (1982) e praticamente todos os filmes seguintes do Studio Ghibli, Akira (1988), Ghost in the Shell (1995), Perfect Blue (1997) e muito mais.

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Pode ser uma surpresa para você, mas GITS não tem só arma legal, alta tecnologia e lutinhas. O ponto central sempre se baseou em pontos políticos e filosóficos

Mas, falar sobre essas obras populares todas demanda mais atenção. E uma merecida atenção, pois a visualização dos discursos políticos são bem necessários para entendermos que a realidade que o Japão viveu no pós-guerra e na ascensão econômica nas décadas seguintes inspiraram diretamente todos os os autores dessas produções

Por isso, acessem e leiam mais no texto “Mangás e animês populares do século XX com discurso político”, que será publicado em breve. 

¹: Para lerem mais a respeito, recomendo o texto “Aliança de Bolsonaro é mais radical de direita do que Arena da ditadura” de Fábio Zanini (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/alianca-de-bolsonaro-e-mais-radical-de-direita-do-que-arena-da-ditadura.shtml) e “GRUPOS PRÓ-BOLSONARO NO WHATSAPP NÃO SE DESMOBILIZARAM COM A VITÓRIA. PELO CONTRÁRIO, ESTÃO MAIS RADICAIS” de David Nemer (https://theintercept.com/2019/08/23/grupos-pro-bolsonaro-whatsapp-estao-mais-radicais/)

²: Para entender o que foi o Macartismo nos EUA, recomendo a leitura do texto “Medo do comunismo nos EUA: os professores perseguidos e demitidos nos anos 50 sob a suspeita de serem ‘vermelhos’”(disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46502709)

Bibliografia de livros usados para o texto:

SATO, Cristiane. JAPOP – O Poder da Cultura Pop Japonesa. São Paulo, Editora NSP Hakkosha, 2007. 

GRAVETT, Paul. Mangá – Como o Japão Reinventou os Quadrinhos. São Paulo, Conrad Editora, 2006. 

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo, Editora Aleph, 2009.

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