*Texto feito em parceria com a co-fundadora do Chimichangas e redatora, Buru
Quando criança muitas vezes não víamos os problemas com personagens menores de idade nos desenhos e isso não nos impediu de continuar acompanhando animes. Toda a década de 90 e 2000 foram tempos que o debate sobre sexualização de crianças e pedofilia também não era algo tão presente.
Na mesma linha, os anos 80 e 90 na televisão brasileira não foram a coisa mais saudável possível para as crianças, que assistiam Banheira do Gugu e ouvia Mamonas Assassinas sem nenhum pudor. Porém, hoje, certas coisas não são mais permitidas (e com razão).
No entanto, quando começamos a assistir anime ou ver esses programas brasileiros na vida adulta, o filtro muda completamente, e muitas vezes não conseguimos deixar de lado algumas questões. Por vezes o incômodo é tanto que nos impede de conhecer outras obras que sequer retratam essas coisas.
E a verdade é que geralmente questões de pedofilia, sexualização extrema e presença de personagens muito novos em situações constrangedoras não ditam exatamente todo o mercado editorial de mangás no Japão, nem na criação de animês. Mas o problema é muito mais embaixo, e por isso resolvemos pesquisar a fundo esse tema espinhoso e trazer várias informações para vocês.
Vira e mexe fãs de anime são abordados por pessoas que veem esses problemas e questionam a respeito. E a gente não sabe o que responder muitas vezes. Por isso este texto serve como um guia para se informar e também saber como instruir outra pessoa quando o assunto surgir.
Mas antes de mais nada é importante salientar que a pedofilia é uma questão mundial, que está presente em todos os países, seja de forma gritante ou discreta. Culpar os japoneses ou julgar toda uma indústria por um problema e crime sério que é pedofilia é bastante racista.
Por isso é importante lembrar que o próprio Brasil tem questões sérias sobre pornografia infantil de muito tempo e que ainda precisam ser discutidos, tanto no campo dos cidadãos comuns, quanto no campo legislativo. São formas necessárias para encontrar maneiras de proteger crianças, educar a sociedade, e evitar crimes como pornografia infantil e violência sexual.
Conceituando a pedofilia
Pode parecer besteira ter que conceituar algo que ouvimos falar há tanto tempo, mas é importante que tenhamos sim uma definição, tanto do ponto de vista jurídico, quanto de saúde, pois sim, a pedofilia está ainda na lista de doenças da Organização Mundial da Saúde.
Portanto, o próprio conceito da palavra é bem mais complexo do que pensamos e é preciso ter todos esses cuidados para sabermos do que se trata.
Do ponto de vista jurídico é fundamental que você entenda que cada país possui sua legislação sobre o tema. Vamos aqui trazer algumas noções sobre como é no Brasil, no estrangeiro ocidental e no Japão.
No entanto, com as definições médicas e da OMS, a pedofilia passa a ser um assunto que permeia MUITO MAIS a sociedade do que simplesmente vê-la como crime penal. Existem questões que não estão ligadas à ideia de criminalização, mas sim médica, com tratamento e noções de cidadania para resolver o problema.
Claro que o tema é um tabu de várias formas, pois existe a linha tênue de falar sobre prevenção e combate à violência sexual infantil e falar exatamente como é o funcionamento do mercado de pornografia infantil.
Essa linha tênue afasta bastante gente, com medo do tom mais pesado e de dar mais armas para potenciais pedófilos. No entanto, organizações que combatem a pornografia infantil tentam mostrar como esses abusos acabam com a identidade de crianças e jovens menores de idade.
E quando falamos sobre criação de arte, o assunto é ainda mais delicado, pois até onde deve ir os limites do que é considerado pornografia infantil “desenhada” e o que é liberdade de expressão?
No campo dos mangakás e artistas japonesas, a criminalização de mangás, animês e arte no geral que possuem menores de idade em alguma posição mais violenta pode fazer com que tenha uma aplicação de censura sem nenhum filtro, coisa que já aconteceu nos EUA com o chamado Macarthismo.
Enfim, o tema é bastante delicado, e vamos começar definindo melhor o termo pedofilia.
Jurídico Brasileiro
O jurídico brasileiro é bastante detalhista do ponto de vista legal, portanto vamos se ater mais à informações básicas e deixar os links disponíveis para leitura. No Brasil, a proteção à criança e ao adolescente é totalmente voltado para o Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1990.
Nele, todos os direitos e proteções são assegurados, como “direito à vida e à saúde do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade, à adoção” etc. Na Constituição há também o artigo 227, que diz o seguinte:
Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Por fim, há o parágrafo 4 do Código Penal, que trata do Abuso Sexual, mais específico sobre abusos físicos:
§ 4º – A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.
No entanto, a lei está restrita ao Código Penal, e não civil, o que dá brechas na situação de pessoas com transtorno pedofílico que não abusam, mas exploram moral e psicologicamente crianças. Segundo o Código Penal brasileiro, o que é crime é o abuso sexual de menores de 14 anos e consumo e distribuição de pornografia infantil.
Nesses casos, os crimes cometidos que se enquadram na lei são:
- Estupro de vulnerável
- Violação sexual mediante fraude
- Assédio sexual
- Corrupção de menores
- Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente
- Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável
As penas mudam de acordo com o crime cometido, mas todas são penas de reclusão, com adição de multa se necessário. Podem se enquadrar em crimes hediondos ou não, dependendo de toda a condição do crime. A pena é aumentada se o ato cometido foi com mais de uma criança/adolescente.
Jurídico estrangeiro
No mundo Ocidental, quem tomou a iniciativa e passou a discutir o assunto com mais responsabilidade foi a Inglaterra, que foi o país base usado também por outros países que falaremos a seguir, como EUA e Canadá.
A discussão começou quando os quadrinhos passaram a ser mais comuns e populares, e um artigo da lei sobre pornografia infantil veio com o seguinte questionamento: imagens de desenhos podem ser classificadas como pornografia infantil?
O assunto sempre foi subjetivo e até a última década pouca coisa havia avançado, segundo informações do paper de Murray Lee Eiland, um acadêmico da LLM (Munich Intellectual Property Law Center).
No dia 8 de dezembro de 2008, um juiz da cidade de New South Wales proferiu uma decisão afirmando que personagens do desenho “Os Simpsons”, cujas “aparências fossem semelhantes” poderiam ser ilustrados em cenas sexuais. Resumidamente, o magistrado concluiu que os personagens eram deliberadamente diferentes de quaisquer aparências que um ser humano poderia ter, portanto não havia nenhum problema em ter pornografia no seriado. (LEE, 2009)
De acordo com Murray, o magistrado não agiu contra a lei, contra a constituição, ele seguiu a risca o que está escrito no artigo. E ele ainda ressalta que é uma linha tênue definir o que é ou não pornografia desenhada, e que uma ação jurídica pode restringir a liberdade de expressão na arte.
“Veja bem, restringir a liberdade de expressão, tanto no que diz respeito à arte quanto às demais mídias, pode facilmente esbarrar com o conceito de censura.” (LEE, 2009)
Além disso, segundo Lee, não existe um consenso geral de que toda imagem desenhada que remete à pornografia infantil pode receber uma diretriz legal igual à de fato um ato de pornografia infantil com crianças ou jovens menores de idade. No entanto, de 2000 para cá, o Ocidente tem dado mais atenção ao tema.
Um bom exemplo com relação à Inglaterra é o “The Children and Young Persons Publications (Harmful Publications) Act” de 1955. Esse ato legislativo diz respeito às histórias contadas especificamente por meio de imagens. As leis evoluíram nos últimos anos e o Reino Unido proibiu a venda e distribuição de mangás que continham histórias de violência sexual infantil.
O objetivo foi regulamentar os quadrinhos, sobretudo hq’s de terror que eram importadas dos EUA nos anos 50. Embora a preocupação maior fosse com o gênero horror, essa medida foi importante para sinalizar que os países ocidentais estavam vistoriando os conteúdos visuais e que até mesmo uma ilustração de aparência “cartunesca” estaria sujeita às sanções legais.
Já nas leis dos EUA e do Canadá o tema é mais relevante. Nestes dois países, as leis podem ir de encontro aos direitos constitucionais, abrangendo o direito de expressão. Embora seja levado com mais seriedade no ocidente, até 2009 existiam poucos casos judiciais envolvendo pessoas em posse de material pornográfico infantil artístico.
Jurídico japonês
Ter posse, produzir ou distribuir materiais de pornografia com meninas reais é proibido, mas não existe restrição para imagens igualmente violentas em personagens femininos menores de idade. Tá tudo bem vender no principal bairro de cultura pop japonesa, Akihabara, assim como disponibilizar todas essas imagens, doujinshis e mangás oficiais na Internet.
A decisão legal aconteceu apenas em 2014, mas não teve nenhum combate à materiais de pornografia infantil desenhados. A restrição também só foi possível após bastante pressão do bloco do G7 e de outros países ocidentais.
Antes disso, em 1999, o Legislativo, em conjunto com grupos opositores ao governo na época, passaram uma legislação mais suave sobre pornografia infantil, banindo a produção e distribuição de materiais com crianças e menores de idade. A decisão também se deu pela pressão dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Ainda que a lei de 2014 pareça clara no quesito “mulheres reais”, a própria proibição deixou áreas bem cinzas que não foram discutidas. Essa área inclui quaisquer imagens de girl-bands na cultura pop japonesa que estiverem em imagens de lingerie ou em poses bastante sugestivas.
A questão é que nem toda idol é maior de idade, na verdade há um mercado totalmente voltado à meninas jovens e crianças. E as fotos sensuais também são comuns para essa área. Falaremos mais disso em outros tópicos.
São materiais que são um prato cheio para pedófilos tanto japoneses, quanto para o mundo todo na Internet. A modelo e atriz, Kiko Mizuhara, chegou a denunciar, ainda em 2020, a empresa Shiseido, por assédio sexual cometido pela equipe que fez um ensaio com a modelo em 2013.
Na época ela tinha 23 anos e mesmo assim teve que se sujeitar a uma situação bastante constrangedora, com uma equipe de 20 homens esperando pela foto dela nua. Ela pediu mais de uma vez que as fotos mais sensuais fossem feitas apenas com o fotógrafo. Sua solicitação foi totalmente negada e ela foi exposta a um tipo de atração para 20 homens.
Ela, maior de idade, passou por essas situações, sendo uma das figuras mais conhecidas do meio artístico japonês. Quem garante que outras idols e modelos menores de idade estejam seguras? Não há nenhuma regra legal quanto a isso e provar esses crimes é muito difícil.
Ainda falando sobre a legislação japonesa, mesmo que a lei de 2014 não seja muito clara, os legisladores encontraram formas de punir os usuários que têm posse de materiais com menores de idade (reais) em poses sensuais e bastante sexualizadas em revistas e books de fotos.
O cidadão que tiver posse desses tipos de materiais poderá receber uma punição de 1 ano de prisão e uma multa de aproximadamente U$10 mil dólares.
Já segundo Murray Lee, o problema é mais embaixo referente à animês e mangás. A indústria pornográfica desenhada não é uma fantasia suave e com meninas apenas peladas fazendo sexo casual consentido.
No Japão há um mercado legalizado que mostra crianças sendo torturadas, estupradas e abusadas de todas as formas imagináveis, sem que seus órgãos sexuais sejam mostrados. Estes sites são considerados legais, de acordo com o artigo 175 do Código Penal Japonês, que regulamenta a indústria pornográfica.
Nesse ponto, a violência física a meninas crianças ou adolescentes passam de qualquer limite do tolerável. São conteúdos bem sensíveis e que nem todas as pessoas conseguem sequer ver a capa, de tão pesadas.
“A obscenidade se baseia em normas culturais. Algumas leis proíbem a exibição de genitais adultas, pelos pubianos e atos sexuais. A representação dos órgãos genitais infantis aparentemente não são citados especificamente em leis japonesas. No fim das contas, isso significa que no Japão a única condição é que os mangás não atravessem essa linha tênue para se enquadrar nos padrões de obscenidade.” (LEE, 2009)
Conceito psiquiátrico
Saindo do campo jurídico, a pedofilia é um tema médico, de saúde. Ainda em 2019 a OMS reforçou a classificação de doenças mundiais, e a pedofilia ainda está figurando na lista como um transtorno. Segundo a OMS, “pedofilia é uma preferência sexual por crianças, sejam meninas ou meninos, normalmente na puberdade ou na puberdade precoce.”
A pedofilia está no mesmo grupo da necrofilia (o desejo de ter relações sexuais com cadáveres) e a zoofilia (o desejo sexual por animais), se tratando de um transtorno que não possui relação alguma com transgeneridade e homossexualidade, que não são mais considerados transtornos pela própria OMS.
O diagnóstico e tratamento da pedofilia tem sido mais debatido e divulgado pela organização científica médica, pois é uma forma de evitar que um pedófilo seja um criminoso. O G1 fez uma matéria bastante extensa sobre tratamentos e o papel da medicina com o paciente pedófilo.
Mesmo no campo médico o tema é um tabu, pois moralmente ainda acredita-se que tratar um pedófilo é dar mais importância ao “criminoso” do que à vítima. No entanto, nem todo molestador possui sintomas pedófilos, como Danilo Baltieri, médico-psiquiatra da Faculdade de Medicina do ABC, explica na matéria do G1.
“Os pacientes com o chamado transtorno pedofílico em geral necessitam de abordagens interdisciplinares. Não só do médico. Ele precisa do psicólogo, do assistente social, é necessário o apoio da família”, completa Baltieri.
Um usuário com transtorno pedofílico pode não ter cometido nenhum tipo de abuso à uma criança, e portanto, com tratamento, diminui-se a possibilidade do crime no futuro. No entanto, não há uma cura para a pedofilia, há apenas tratamento para mitigar um problema que o usuário terá de controlar e conviver para a vida inteira.
Há pedófilos que foram condenados, e mesmo eles precisam entender o que se passa dentro de si, para que quando voltar à sociedade (se voltar), não cometer mais o crime. Segundo Baltieri, de 20 a 30% dos abusadores de crianças tem o transtorno pedofílico, pois se trata dos desejos inerentes a eles.
Porém, há abusadores que são definidos inteiramente por seus atos, e não têm preferência sexual por crianças, apesar de ter abusado de alguma em algum momento da vida. Esses não são caracterizados como pedófilos, somente abusadores.
No campo médico, há ainda um consenso básico sobre relação pedófila. Dificilmente um jovem de 19 anos, que têm relações com outra jovem de 15, possui transtorno pedofílico. Porém, ele pode ser enquadrado em algum ato infracional, não exatamente sobre abuso sexual (nossa legislação é bem confusa nesse ponto).
Esses detalhes também são subjetivos, pois o transtorno pedofílico é pouco estudado de forma generalizada. Assim, essas questões não se aplicam a todos os países e culturas, e uma relação com mulheres jovens pode ser totalmente normal, sem julgamentos morais ou jurídicos.
O MSD Manuals possui uma página totalmente dedicada à pedofilia, tanto do ponto de vista que deve ser tratado por um médico, e por um cidadão comum e paciente.
Por que existe a relação de pedofilia e Japão?
Essa pergunta não é já tão difícil de responder. Entre os países do G7 (bloco de países com a hegemonia econômica), o Japão foi o último a modificar a lei e tornar a venda, distribuição e produção de pornografia infantil ilegais.
Apesar da lei ter surgido em 2014, ainda há bastante normalização da sexualização infantil em toda cultura pop japonesa, seja com idols, mangás, animês e jogos. Apenas se passaram 6 anos da lei.
Houve melhora e aplicação de sanções, como mostramos nas consequências jurídicas no subtópico acima, no entanto, a diferença para os outros 6 países do bloco econômico é gigantesca.
De acordo com a matéria da BBC UK, por exemplo, em 2015 e 2016, aconteceram mais de 5 mil prisões por posse de pornografia infantil, com 481 condenações no Reino Unido. No Japão, no mesmo período, foram 37 casos confirmados.
Para piorar a sua imagem no mundo, o Japão era o único país do bloco de países mais desenvolvidos no mundo (sim, fora do G7) que ainda não tinha proibido universalmente a pornografia infantil em 2014.
E ainda não há a proibição universal, já que vários materiais que tentam fugir da ideia literal da pornografia (usando desculpas de que as crianças estão vestidas, a mulher tem 19 anos apesar de tentar parecer ter 15, e também está de biquíni e poses sensuais apenas) são vendidos normalmente nos principais bairros comerciais de Tóquio e de grandes cidades.
Essa é a realidade mais recente, no entanto esse fetiche de homens japoneses gostarem de meninas e mulheres muito mais jovens data de outras épocas. Ainda na criação da indústria pop japonesa houve o fenômeno conhecido como “lolicon guy”, que se auto intitulou por ser um amante de “meninas pequenas e coisas fofas”.
Esse homem nada mais foi que Hirukogami Ken, um cara que se orgulhava de gostar de coisas fofas e pequenas, e toda a representação feminina nos shojo mangá, e se tornou uma figura inspiradora para outros homens no fim da década de 1970. (GALBRAITH, 2016)
Galbraith escreveu o capítulo ‘The Lolicon Guy:’ Some Observations on Researching Unpopular Topics in Japan no livro da editora Routledge, de nome: The End of Cool Japan: Ethical, Legal, and Cultural Challenges to Japanese Popular Culture. O capítulo é dedicado ao contexto histórico do termo lolicon/lolita complex, que veio de “Lolita”, por conta da obra do russo Vladimir Nabokov de mesmo nome.
A história é sobre um homem bem mais velho obsessivo com uma menina de 12, e sim, há desejos sexuais envolvidos, estupro e violência. Até hoje a obra é considerada necessária para observar o quão problemático é a fascinação sexual de um homem mais velho por uma criança. A partir disso, é possível ver que esse problema não é uma exclusividade japonesa.
Voltando ao Japão, “lolicon” (rorikon como é falado em japonês) foi um termo utilizado pela primeira vez por Wada Shinji, no mangá shoujo “Kyabetsu-batake de tsumazuite”, em 1974. O autor é mais conhecido por outras obras do gênero, como Pygmalio e Sukeban Deka.
O autor faleceu em 2011, mas na década de 1970 foi marcado no meio editorial também por chamar Lewis Carrol, autor de Alice nos País das Maravilhas, de “lolicon” por gostar muito de fazer personagens esquisitos que gostam de crianças pequenas. (GALBRAITH, 2016)
Mas enfim, desde então o lolicon se tornou uma fuga para homens mais velhos, na casa dos 30 ou 40 anos, de hoje se definirem na sociedade e buscarem ser aceitos. É um assunto bastante complexo, e que recomendamos a leitura de todos os links referenciados.
Para dar um exemplo de como o lolicon e a fascinação por coisas pequenas e fofas no Japão passou bastante dos limites, vale lembrar das indústrias de bonecas sexuais, que vão desde a criação de bonecas de pano com orifícios para penetração, até robôs femininos de aparência muito jovem que possuem inteligência artificial.
Também vimos 2 documentários que se fazem muito necessários serem citados para entender melhor o mercado japonês e o lolicon. E um terceiro que vale para complementar os outros 2 documentários.
Young Sex For Sale In Japan
O documentário da BBC UK (Reino Unido) abrange um debate sobre toda a normalização da pornografia infantil e do abuso à colegiais mulheres. Os abusos contra meninas não estão relacionados diretamente à uma indústria cinematográfica, como acontece em outros países.
Apesar da falta de constatação de uma indústria ilegal cinematográfica, há um mercado legalizado, conhecido como JK Business, que atua principalmente nas grandes cidades, como Tóquio.
Resumidamente, o JK Business é bem lucrativo no Japão e se trata de um mercado de exploração visual de meninas mais novas. Elas são expostas em fotos provocadoras, são usadas para conversar por 30 ou 40 minutos com homens mais velhos em cafés, que no Japão são tipo bares, entre outras atividades exclusivamente de crianças e adolescentes.
É humanamente impossível explicar todas as questões tratadas no documentário apresentado por Stacey Dooley, mas é um documentário necessário para entender como ocorrem os abusos contra meninas.
Através dele é bastante claro entender que a larga maioria da indústria JK é focada em meninas. Não há a mínima menção à meninos sofrendo esses tipos de abusos morais, psicológicos e, por vezes, físicos.
As crianças são alvos mais fáceis por serem ingênuas e inocentes, e acabam caindo na lábia de “representantes” obscuros, e inclusive aceitam papéis porque os pais (sim!) permitiram. As crianças são da faixa de 6 à 10 anos de idade e se expõe à books de fotos provocativas, com roupas de banho e similares. Esse tipo de coisa ficou conhecida como Chaku Ero.
Os packs são vendidos e chegam a faturar milhões de ienes (em torno de 4 à 5 milhões de ienes, que na cotação atual seria algo em torno de R$198 mil à R$247 mil), segundo um produtor do mercado que aceitou ser entrevistado pela BBC. Bom, perceberam que é uma indústria lucrativa, ainda que a violência não seja física?
No campo da juventude, jovens mulheres de 15 e 16 anos acabam fazendo trabalhos em JK Cafés e se expondo a homens bem mais velhos, que preferem se relacionar com meninas menores de idade.
Ainda que algumas regras existam nesses cafés, como a proibição dos clientes verem as colegiais fora do estabelecimento, não há exatamente nenhum órgão de fiscalização no meio, ou sequer uma agência de talentos para assegurar a proteção das adolescentes.
Meninas dessa idade são abordadas na rua e coagidas a trabalharem nesses cafés ou fazendo fotografias na linha do Chaku Ero, mas mais pesadas e com menos roupas. Há casos em que essas jovens entram de fato para o mercado de prostituição, sendo bastante desejadas pela idade.
As motivações para as meninas que aceitam as propostas são várias, e são algumas situações que nos ajudam a entender porque se submetem à esses tipos de trabalhos. Entre elas estão:
- Crises familiares;
- Crises financeiras, que fazem alunas tentarem bancar dívidas escolares etc;
- Bullying e falta de aceitação da sociedade que vive;
- Pensamentos auto destrutivos e suicidas.
Apesar do grande problema, também há figuras que buscam combater esse tipo de assédio que meninas convivem diariamente. Há um apoio para mulheres em situações vulneráveis, como depressão e automutilação. Quem comanda essa iniciativa é uma ONG japonesa.
Na ONG há ainda um grupo que age em Shibuya, procurando por situações embaraçosas que colegiais passam nos finais de semana, alertando e dando orientações de como evitar assédios verbais na rua e negar encontros com agenciadores de má índole.
Fora a ONG, há a advogada Kazuki Ito, que possui um escritório dedicado ao combate à pornografia infantil e ao Chaku Ero, que é considerada uma pornografia soft, portanto, legal e que passa despercebida pela lei japonesa.
Por fim, uma figura bastante conhecida no ocidente por sua luta contra a violência infantil em todas as frentes no Japão, incluindo a cultura pop: Shihoko Fujiwara, da ONG Lighthouse. Shihoko chegou a dizer no documentário que “proteger crianças não é prioridade para os líderes japoneses”.
Tokyo Idols
Documentário que pode ser visto na Netflix, fala sobre o mercado de idols existente no Japão, apresentando a realidade de diferentes artistas e fãs de idols. Novamente o mercado é voltado 100% para mulheres e o fenômeno idols não acontece apenas com artistas reais, mas inspirou animes, filmes e animações no Japão¹, com grandes comunidades.
Tokyo Idols mostra as dificuldades de manter uma carreira artística no Japão, e que muitas mulheres começam no cenário idol para conquistar um fandom e tentar crescer em outros setores. A busca normalmente é para serem atriz ou carreira solo na música.
No entanto, o cenário idol não é ilegal para meninas de 8 a 17 anos. Majoritariamente os grupos idols com menores de idade possuem fandom masculino, com homens de mais de 20 anos, chegando a 40, 50 anos. Quanto mais velho, mais dedicado às idols o homem é.
Minori Kitahara, jornalista entrevistada pelos produtores do documentário explica que “esses homens nunca tentaram se aproximar de mulheres normais (de suas idades). Eles acham que devem ser amados e aceitos sem nenhum esforço”. E complementa. “Em vez de se conectarem com mulheres do dia a dia deles, preferem escolher garotas que eles possam dominar, que com certeza não os desafiariam ou magoariam”.
Os homens fazem filas para poderem falar com idols menores de idade por 5 minutos, ou mesmo pegarem nas mãos delas. Os pais das meninas permitem que elas trabalhem no cenário, e não há nenhum questionamento com o fanatismo dos homens mais velhos pelas meninas, não no meio idol.
“Essa sociedade fará de tudo para proteger as fantasias masculinas e assegurar o conforto dos homens”, explica, Kitahara.
No documentário fica claro que os fãs homens, que acompanham artistas mulheres, buscam sucesso dessas artistas, mas ao mesmo tempo, também procuram por um sucesso próprio, tentando encontrar um objetivo de vida. São homens comuns, que se sentem perdedores de alguma forma, e encontram no cenário idol uma fuga.
São homens solteiros, que já conquistaram certo status financeiro e podem gastar parte do salário com um hobby. É perceptível que não há um suporte psicológico para essa parcela de homens, que até então se sentiam perdidos e sem nenhum sonho especial na vida. Ao não performar socialmente, acabaram encontrando nas idols uma esperança.
“O trabalho de uma mulher é sempre sorrir e consolar os homens. Algumas pessoas dizem que essas meninas escolheram isso, então não há nada de errado com essa fantasia por ‘menininhas’. Se uma intrusa, como eu, contesta isso, a reação é bem agressiva”, Kitahara argumenta.
Ao conectar com outros documentários, pedofilia e a sexualização de mulheres menores de idade no Japão, é possível ver que há potenciais pedófilos nesse cenário idol mostrado em Tokyo Idols, ainda que não sejam abusadores.
Sentimentos conflitantes serão comuns ao assistir o documentário, numa mistura de tristeza, choque e desconforto. Para entender mais sobre esse mercado, fica a recomendação da matéria do Jakarta Post.
Sex Robots and Us
Lembram quando citamos no texto que quando falamos de sexualização de menores, pornografia infantil desenhada e R+18 violento, esse mercado não é unicamente artístico à mangakás?
O questionamento e o debate sobre o problema no Japão não se resume aos mangás problemáticos. Eles são apenas um dos conteúdos. Quando tratamos sobre a normalização de meninas sexualizadas, toda a cultura pop japonesa está rodeada desse problema. Do cenário musical, de modelos, aos games e à propaganda de produtos.
No entanto, há uma camada ainda mais profunda nesse meio que é explicada com mais detalhes no documentário Sex Robots and Us, também da BBC UK. Sim, é sobre o mercado de robôs sexuais para satisfazer fetiches de pessoas que não querem relacionamentos com pessoas reais.
Esse mercado é mundial. No entanto no Japão, há uma indústria bastante peculiar que causou espanto até mesmo para o produtor do documentário, James Young. No subúrbio de Tóquio uma indústria de bonecas sexuais tem especialidade em criar bonecas de pequeno porte, ultra-realistas e que parecem incrivelmente com crianças.
O dono da indústria explicou que os homens que compram essas bonecas “possuem um tipo de sentimento por coisas pequenas, tamanhos e aparência de crianças”. Não há nenhuma regra sobre fabricação de bonecas sexuais, então as de aparência infantil são bastante requisitadas por homens mais velhos.
Young, jornalista e um dos produtores do documentário se sentiu horrorizado ao ver essa linha de bonecas sexuais crianças.
A proibição da pornografia infantil desenhada e JK Business
Entre os países ocidentais que mais pressionam o Japão está o Reino Unido. Há muitos conteúdos de jornais britânicos referentes às problemáticas do mercado japonês e porque consideram a proibição dessas mídias.
Em associação ao Reino Unido, outros países também esperam novas atitudes do Japão, principalmente os aliados ao G7 e à OCDE, como já citados no texto.
Entre as mídias que devem ser banidas, bom listar para deixar o mais claro possível, estão:
- Mangás de pornografia infantil;
- JK Business como um todo, com a proibição do Chaku Ero e a venda de packs de fotos de menores de idade em poses sugestivas;
- Produções animadas pornográficas com menores de idade;
- Proibição da super-exposição e exploração de imagem de idols menores de idade.
Aqui é importante entender que a discussão gira em torno de conteúdos que claramente atentam contra a segurança da criança, não só física, mas moral e psicológica. Antes de 2014, cidadãos japoneses podiam ter conteúdos como fotos, vídeos e outras mídias contendo crimes sexuais contra crianças reais.
A única restrição era de que essas mesmas pessoas não vendessem esses conteúdos ou publicassem na Internet. Mas a posse era legalizada. Com a lei de 2014, o Ocidente passou a pressionar mais o Japão para resolver brechas e pontas soltas que ainda eram permitidos, como os listados acima.
Já a proibição de conteúdos desenhados e animados se dão inteiramente para o mercado bem pesado, com torturas, estupros e abusos contra menores de idade. O ecchi, por exemplo, da Shonen Jump, se safaria, mas com a proibição da pornografia desenhada, a régua pode respingar para conteúdos mais leves, mas bem sugestivos e de sexualização extrema.
Uma das organizações mais presentes é a United Nations Peacekeeping, grupo da ONU que chegou a dizer que “pornografia infantil extrema é um conteúdo em mangá que deve ser banido” ainda em 2015, para o jornal The Guardian.
Essa opinião não é exclusiva de pessoas e grupos do Ocidente. Masatada Tsuchiya, membro do partido Liberal Democrático do Japão falou em 2014 que “eu acredito que esse tipo terrível de material não está protegido pela liberdade de expressão”, em entrevista para a CNN, um jornal norte-americano.
Ainda pela visão “ocidental” do tema, Mio Bryce, um australiano especialista em cultura otaku também conversou com a CNN, e explicou que a discussão deve ser feita com cuidado, pois o Japão já possui um estilo de arte que remete à “coisas fofas”.
“Fofice significa geralmente um personagem mais infantil. Talvez o personagem tenha 20 anos de idade, mas do nosso ponto de vista, ele tem 15 anos. É difícil diferenciar.”
Mio quer dizer que a régua de julgamento tem que ser um pouco diferente para que não tenha uma cultura de censura real em imagens fofas que não possuem intenção de explorar a sexualidade de crianças.
No entanto, do outro lado da moeda, do Japão real, o Departamento de Estado dos EUA fez um relatório relacionado aos direitos humanos no país asiático. Problemas existentes fazem parte do estudo, como a exploração de crianças, além de discriminação contra a mulher no mercado de trabalho, entre outras questões sociais. As informações usadas foram coletadas de 2009 até 2017.
Dados de 2012 também clarificam bem os problemas. O relatório cita dados da polícia japonesa, apontando que o número de investigações de pornografia infantil em 2012 cresceu 9.7% em relação ao ano anterior, atingindo um recorde de 1,596 vítimas. Os casos envolviam 1,264 vítimas crianças, quase o dobro do ano anterior
Apesar de todas essas constatações, a pressão para a proibição de materiais pesados ou leves de pornografia infantil tenta se basear em uma das principais publicações sobre o mercado de pornografia e prostituição do Japão: Sexnomics, do economista Takashi Kadokura.
Segundo dados do livro, existe um mercado de prostituição de adolescentes e 1 a cada 10 homens japoneses possuem o “lolita complex” (tendências pedófilas). 15% da população masculina vê pornografia infantil, desses, 10% possuem mídias de pornografia infantil em casa.
Por conta de toda essa realidade, a proibição dos conteúdos seria uma forma de diminuir o consumo e a normalização dessas condutas. No entanto, é preciso ser bastante claro: a simples proibição não apaga o problema por completo.
Linha tênue entre liberdade de expressão e censura
Para o Japão, as restrições de censura não foram efetivas em 1950 e 60, como aconteceu nos quadrinhos norte-americanos com o chamado Macarthismo, que ordenou um selo de idade que atestava as histórias como “apropriadas”. Histórias que não tinham o selo eram as consideradas “inapropriadas”.
No Japão, uma saída possível para evitar os respingos da censura pelos EUA foi censurar as genitais dos personagens de qualquer gênero. Desde então essa é a única linha de limite da liberdade de expressão no Japão, que propiciou um ambiente bem mais liberal na época.
Com a regra é possível criar histórias de qualquer temática, seja pesada ou não, desde que não mostre genitais. A censura auto-imposta pode ser aplicada com ângulos específicos que não precisem demonstrar a genital, ou borrar as genitais, utilizar tarjas pretas.
No entanto, a medida contra a censura na época nunca foi repensada quando os conteúdos considerados de pornografia infantil começaram a ser criados. Para os quadrinhos, portanto, R+18 com conteúdos de violência sexual contra menores de idade, bastam censurar as genitais de meninas de 6 anos, 10 anos, ou mesmo 16 anos.
Esses mesmos conteúdos bastante pesados são proibidos na maior parte dos países ocidentais, que apenas podem importar mangás eróticos com personagens maiores de idade, mas também podem sofrer sanções, podendo ser mais restritos na hora da venda. Aqui no Brasil, a NewPop é a editora que trouxe mangá erótico (com maiores de idade) para o público.
Do ponto de vista de quem trabalha desenhando e traduzindo mangás eróticos com meninas, não foi apenas a pressão de artistas japoneses que mantiveram o mercado existindo. Mas muitos acreditam que esses materiais sejam um “impeditivo para que pedófilos segurem seus desejos carnais contra meninas reais”.
No entanto, essa crença não é utilizada como tratamento psicológico e médico. Um dos tratamentos é para que os homens mudem o foco de atração quando estiverem em uma tensão sexual. É o que chamam de redirecionamento masturbatório.
Até então também não é um tratamento modelo, mas evita-se ao máximo o uso de mídias e entretenimento com gatilhos para os pedófilos. O redirecionamento vai na contra mão dessa ideia, ou seja, fazer o homem pensar em pessoas de sua idade, mais velhas, enquanto estiver em um ato masturbatório.
No documentário Young Sex for Sale in Japan, Stacey entrevista também um “lolicon confesso” que nunca fez sexo com mulheres reais, mas que usa uma boneca de pano de aparência infantil para satisfazer suas fantasias sexuais. Segundo ele, ele nunca encostou em meninas de verdade, mas que se fosse permitido se relacionar com menores de idade, ele tentaria.
Para Stacey, após a entrevista, ficou um sentimento amedrontador com o pedófilo, a ponto dela nunca querer deixar ele sozinho com criança alguma. O quanto ele normaliza a si mesmo e quer ser aceito traz grandes incertezas e desconfianças para Stacey.
No entanto, o documentário tenta entender as motivações e explicações de quem consome esses tipos de conteúdos e objetos sexuais no Japão. Ainda que Stacey, a apresentadora, considere banir esses conteúdos de vez, a simples proibição não extinguirá esses desejos existentes em parte dos japoneses homens.
Exatamente por conta disso, o Chimichangas achou importante citar as questões da OMS e da medicina sobre o assunto, pois há uma parcela dos pedófilos que não abusam fisicamente e psicologicamente de meninas reais, mas possuem questões mentais para serem desconstruídas e discutidas.
Existe limite da liberdade de expressão?
Ainda sobre a temática, países ocidentais no geral possuem restrições à temáticas na cultura pop, para que temas bastante violentos e pesados sejam feitos com mais cuidado. Não existe a proibição em falar sobre violência sexual, violência infantil e pedofilia, no entanto, não é permitido que as figuras e cenas sejam literais demais.
Como um exemplo mais prático, o seriado “A Maldição da Residência Hill”, uma das personagens principais (Theodora Crain) é psicóloga infantil, e atende uma série de famílias. Em um dos casos ela precisa entender porque uma garotinha tem medo do porão do orfanato que vivia, e lá ela descobre que a garota era abusada sexualmente por um dos funcionários do lugar.
O tema está presente e é discutido, no entanto, não existe cenas pesadas de uma criança sendo abusada. A violência do ato é censurada pois não é o que importa, na verdade, pelo contrário, pode trazer sérios gatilhos para potenciais pedófilos.
Esse cuidado não existe em muitos conteúdos japoneses quando falamos sobre o tema. Os atos mais pesados e violentos no máximo possuem a auto-censura que já foi explicada no texto. Exatamente pelo tom pesado e bastante perturbador que existe a pressão do Ocidente para proibir esses conteúdos.
Ainda que a arte possa imitar a realidade, como a própria sexualização de menores, que não fica apenas nos mangás, mas está presente na sociedade japonesa, qual o melhor caminho para que crianças/adolescentes meninas sejam menos expostas como desejo de adultos?
Em um cenário tão complexo e delicado como esse, será que não está na hora de ao menos questionar e discutir o quanto esses conteúdos mais pesados podem ser danosos? Não podem ser um impedimento para que a sociedade japonesa como um todo repense certas atitudes?
Outro caminho nebuloso
Mas a discussão muda bastante quando falamos de conteúdos mais leves, de gêneros bem mais comuns como: “age gap”, “teacher and student” e “ecchi”. Mesmo em situações mais leves, as cenas acabam sendo questionáveis, mas fica em uma área cinza ainda pouco discutida.
E é importante aqui explicar que esses gêneros não são exclusivos de mangás de público masculino. É claro que em mangás shonen/seinen acabam sendo mais comuns, mas é possível ver mangás desses tipos em revistas yuri, BL, shojo e josei.
Existe a romantização de relacionamentos entre professor e aluno a níveis enormes no Japão. O age gap trata de histórias em que a diferença de idade entre os personagens é grande, e por vezes são entre ginasiais com médicas (os) do colégio, ou mesmo colegiais e adultos que trabalham em em função de babá. As opções aqui aumentam bastante.
No entanto, nenhuma notícia, grande reportagem, livros e documentários falam dessa romantização, já que o grande problema ainda está nos conteúdos bastante violentos e literais demais com menores de idade. A área mais cinza é essa, pois é muito mais difícil julgar o que é liberdade de expressão e censura.
Afinal, esses conteúdos são uma forma de normalizar relacionamentos com menores de idade? Podem influenciar uma parcela da sociedade? De alguma forma atingir os direitos das crianças e adolescentes? A régua aqui é bem mais delicada, pois uma lei de proibição pode de fato limitar o que pode ou não ser criado.
Diversos mangás tratam de romances em que a diferença de idade é grande. Alguns podem ser problemáticos, mas não chega nem ser algo unânime. Histórias como Usagi Drop deveriam ser proibidas? É preciso ter cuidado quando se fala em proibição de certos conteúdos, justamente porque a régua pode ficar totalmente deturpada.
Lolicon significa pedofilia?
Infelizmente ainda há discussão quanto ao termo “lolicon”, na tentativa de distanciar o termo da pedofilia. Porém, é bem básico. Lolicon é um termo sinônimo de pedófilo. Não tem a mesma potência denotativa de pedófilo, mas é sinônimo, em referência à Lolita, obra clássica já citada no texto.
O sociólogo Kokichiro Miura, em seu livro “Kouzou-teki sabetsu no sociography”, definiu, em 2004, o entendimento da palavra lolicon.
“A sociedade japonesa entende que [o lolicon] refere-se a indivíduos de tendências sexuais deturpadas, e o termo é usado com carga de julgamento”.
Sendo assim, o lolicon não se trata apenas de amor por crianças 2D em mangás e animês, é generalizado. Pode ser boneca sexual, pode ser figures sexuais de menores de idade, DVD’s, Chaku Ero, JK Cafés, todos eles são considerados atos de um lolicon, logo, pedófilo.
No entanto, ainda que sejam sinônimos, possuem nuances diferentes. Chamar um lolicon de pedófilo literalmente é acusá-lo de um transtorno. Se a pessoa de fato possui a doença, ela deve ser tratada. Mas a palavra “pedofilia” traz uma bagagem pejorativa que denota como um “criminoso”, e como já explicamos, nem todo pedófilo de fato abusou de uma criança.
Como o tratamento psicológico em si já é um tabu no Brasil, no Japão, o assunto é ainda mais restrito e se evita falar sobre tratamentos psicológicos de forma generalizada. Por conta dessas nuances, nos mangás e animês é preferível o uso do termo lolicon.
O termo não é tão acusatório, mas é um sinônimo que remete à fascinação por crianças, ainda que seja igualmente repulsivo. Digamos que em termos técnicos, é usado como eufemismo, para não chamar lolicons de efetivamente “criminosos”.
Os documentários citados explicam mais sobre essa diferença de tom. Lolicons não são homens aceitos socialmente, são tolerados em partes, por conta do lucro que a indústria pornográfica e de exploração visual de menores de idade dá. Pedófilo é como se fosse chamá-los de Kobayashi, o pedófilo da prefeitura de Nara, que falaremos a seguir.
Para fechar o assunto, fica também a matéria do Animes News Network, que dá essa passadela de pano para a questão. Os tradutores de fato possuem uma ideia de que um pedófilo é um criminoso, e não uma pessoa com uma doença que deve ser tratada. É como se o pedófilo TIVESSE que fazer mal à crianças para ser chamado de pedófilo, no entanto, não é assim.
Mostramos as definições psicológicas e de saúde de um pedófilo. Há pedófilos casados. Com filhos, e que nunca tocaram em suas crianças ou criança alguma. O entendimento da OMS de pedofilia também não está restrita à relações sexuais, penetração e abuso, e sim “desejo, tesão, preferência”.
Para se livrar do desejo, muitos de fato consomem pornografia, essa que já falamos que já atingem meninas reais há muitas décadas. Outros pedófilos de fato ferem crianças, como explicado por Baltieri. Ambos são considerados pedófilos na visão médica e psicológica.
Casos factuais de pedofilia
É importante também pontuar que o Japão teve e tem casos reais de pedofilia, assédio, estupro e assassinato de meninas menores de idade. De maneira alguma este texto tem a intenção de fazer sensacionalismo ou pintar o Japão como violento.
Achamos apenas importante que se saiba que crimes existem, e uma fantasia sexual já deixou de ser fantasia e foi para a realidade. Por isso, o debate é ainda mais sério e delicado, pois existe uma parcela de homens que não se contentam com os conteúdos e se sentem na liberdade de objetificar uma criança ou adolescente.
Casos mais pesados não vamos citar detalhes.
Caso Naragirl
Kaoru Kobayashi foi sentenciado à pena de morte no Japão em 2006, por ter sequestrado e assassinado uma garotinha de 7 anos de idade. O criminoso foi executado apenas em 2013.
O assassino ficou conhecido como Nara-girl, por todo o caso ter ocorrido na prefeitura de Nara, em 2004. Além de do caso do assassinato de Kaede Ariyama, o condenado já tinha passagem pela polícia por vários crimes sexuais anteriores. Antes de executar a criança, ele a molestou.
De acordo com o setor jurídico e médico, Kobayashi não tinha mais condições de ser reabilitado para a sociedade. Foram encontrados diversos conteúdos pedófilos em sua casa, e a defesa chegou a dizer que a sociedade tinha culpa em parte, “por ter feito de Kobayashi um pedófilo”.
Número de casos de pornografia infantil e abuso de crianças
De acordo com números da Agência da Polícia Nacional japonesa, os números de abuso contra crianças e pornografia infantil quebraram recordes em 2016. O motivo do aumento, segundo a agência, é por conta da melhor aplicação das sanções/leis pela polícia, e também maior cobrança por parte dos cidadãos.
A polícia reportou 54.227 casos suspeitos de abuso contra menores de 18 anos, 46,5% maior do que o ano anterior. Foi também o primeiro ano em que os casos passaram de 50 mil levando em consideração dados desde 2004.
As violências mais comuns constatadas foram de violência psicológica, sendo 60% do total de casos. O número de abusos cresceu pelo 12º ano consecutivo, levando em consideração um marco iniciado em 2004, com 962 casos.
Os casos de crianças abusadas e usadas em pornografia infantil também cresceu, sendo 45,1% maior do que 2015. O número de casos chegou a 1.313 crianças. Ainda no ano de 2016, a polícia deu proteção a 3,521 menores de idade em situação de ameaça à vida, sendo uma taxa de 34,2% maior do que o ano anterior.
Ainda de acordo com dados da Agência japonesa, os casos suspeitos de abusos físicos somaram 11.165, um aumento de 35,2% em relação à 2015. Casos específicos já descobertos de abusos físicos resultaram na morte de 67 crianças em 2016.
Importante diferenciar casos confirmados de casos suspeitos. O número de investigações e suspeitas aumentaram exponencialmente nos últimos anos, mas condenações efetivadas são outros números, como mostradas no documentário da BBC, com 37 casos confirmados e pessoas condenadas juridicamente.
Todos os dados podem ser conferidas na matéria linkada da Japan Times. Os dados não são específicos de pedofilia, no entanto, em meio ao aumento de casos gerais, existe uma grande possibilidade de que pedófilos tenham relações com certos números.
Lembrando que um pedófilo pode ter abusado fisicamente, mas nem sempre. Basta ser um stalker, controlador e ter desejo obsessivo e muito próximo do que Humbert foi no livro de Nabokov. Portanto, casos de abuso moral ou psicológico também se enquadram, podendo vir juntos com o abuso físico.
Casos de assédios em trens/metrôs
Não é exatamente uma surpresa para a comunidade otaku que mulheres e meninas menores de idade japonesas sofrem assédios nos transportes públicos. Mas, isso se tornou um problema sério. O vídeo abaixo explica melhor essa realidade, feito pelo portal
DW News.
Outro app, conhecido como Digi Police, para ajudar as vítimas foi explicado melhor pelo jornal Japan Times, em um vídeo publicado em outubro de 2019. Segundo o vídeo, em 2017 foram cerca de 900 casos de assédio apenas em Tóquio.
Bem, esses casos práticos mostram que saiu do imaginário fantasioso há muito tempo. O conteúdo de entretenimento claramente não é suficiente para suprir os desejos de pessoas que se sentem atraídas por menores de idade, e nunca foram.
Na verdade é importante pontuar que os mangás e animês foram criados por conta dessa normalização da sociedade real japonesa de se ter desejo por menores de idade. Não o contrário. Os mangás e outras mídias não tornaram homens pedófilos, mas os deu uma chance de consumo que potencializa seus desejos e condutas.
Casos na indústria otaku
Diante de todos esses casos sérios de pedofilia e violência contra menores de idade, temos um caso bem recente e de um mangaká bem conhecido, que foi preso por posse de pornografia infantil. Como a lei de 2014 proíbe a posse também, Watsuki no mínimo deveria ter jogado os conteúdos fora.
Nobuhiro Watsuki
O caso ocorreu no final do ano de 2017², e chocou grande parte do Ocidente, mas nem tanto o próprio mercado de mangás, Watsuki pouco depois voltou a criar seus mangás, pagou uma multa de 200,000 ienes (cerca de U$1900 e R$10 mil) e ficou livre. A Suprema Corte de Tóquio o liberou no mesmo dia da prisão.
O autor foi criador da obra clássica da Shonen Jump, Rurouni Kenshin, e já veio ao Brasil no ano de 2015 para eventos próprios e para a Fest Comix daquele ano.
De acordo com as reportagens, autoridades japonesas encontraram DVDs com vídeos de meninas nuas, com menos de 15 anos, no escritório e na casa do artista em Tóquio. Ele chegou a dizer, na época, que “gostava de meninas do fim do primário e de ginasiais”.
Não há nenhuma constatação de que o autor passou a ter algum tratamento psicológico ou médico após a prisão.
Visão de Ken Akamatsu
Ken Akamatsu, autor de mangás famosos como Love Hina e Negima, é um grande defensor da liberdade de expressão irrestrita e participa de dezenas de entrevistas para os canais informativos sobre o assunto.
Mas, em uma dessas participações, ele disse que “mangá não envolve crianças reais, então não há vítimas”. Por isso, não deveria ser proibido. Ele também disse que não há “evidências científicas que provam” que mangá induz condutas pedófilas.
No entanto, o número de casos apenas aumenta seja qual for o caminho de abuso contra menores de idade no Japão. É importante pontuar que de fato o mangá, sozinho, não é responsável pela normalização de condutas abusivas contra crianças.
Porém, no Japão a cultura pop inteira está impregnada com a visão fantasiosa de meninas fofas menores de idade. E nesse caso envolve sim crianças reais (Idols, JK Business). Nessa realidade, diversos artistas se envolvem com o real e criam nos doujinshis e mangás profissionais histórias similares, por vezes mais pesadas do que a realidade.
Encerramento
Para além dos estudos, artigos e documentários sobre a pedofilia, sociedade ocidental e sociedade japonesa, esse texto não tem nenhum objetivo de tornar o assunto encerrado. Muito pelo contrário, esse texto é uma forma de iniciarmos esse debate de forma séria, educada e com todos os filtros importantes sobre o assunto.
Antes de pensar simplesmente em poder ou não ler/ver um mangá/animê, nós, como indivíduos temos responsabilidades cívicas, com aprendizados para proteger as crianças. Mas, não no método de esconder ou vitimizar grupos, colocando o problema para baixo do tapete e fingindo que crianças não passam por situações de violência sexual.
Quanto mais informação, mais estratégias e bom senso teremos para entender a complexidade do problema e como combatê-la em todas as instâncias. Proibir dados e informações e não falar disso já foram métodos utilizados há séculos, e sabemos onde isso chegou: a lugar nenhum.
Então, que esse seja o início para discutirmos os impactos do lolicon na cultura pop japonesa e se realmente devemos olhar livremente com a bandeira “liberdade de expressão”, ou se há algo a mais a ser feito no campo social, cultural, educacional, e principalmente, comportamental. Acredito, pessoalmente, que há muito a ser resolvido antes de só pensar na liberdade/proibição de mangás/animês.
¹: Animes como Love Live, Bang Dream, Idolm@ster são uma febre no Japão e no mundo, com games mobile, shows virtuais, etc. Além deles, há Perfect Blue, um filme de longa metragem dirigida por Satoshi Kon, que traz à tona o lado mais obscuro do mercado idol, questionando o cenário.
²: Fonte primária do caso Watsuki: https://www.yahoo.co.jp (tudo em japonês)