Acho que não preciso contar a ninguém sobre a articulação dos movimentos antirracistas que vêm ocorrendo em todo o mundo, motivados inicialmente pelo assassinato de George Floyd nos Estados Unidos em 25 de maio de 2020.
Todo mundo que tem acesso aos meios de comunicação percebeu a enxurrada de posts, notícias, manifestações e medidas ligadas à desigualdade racial, mais especificamente em relação à brutalidade policial – problema histórico para os norte-americanos, claro, mas também muito comum ao Brasil, a exemplo de Marielle, Ágatha, João Pedro e tantos, tantos outros.
Como sempre, a cultura pop não ficaria de fora de mais uma tendência temática e logo deu seu jeitinho de surfar na onda do #BlackLivesMatter. Programas de entrevista, podcasts e tiktoks abraçaram o assunto; fotos e vídeos de diversas celebridades nas manifestações; histórias de bastidores ressurgindo e cancelando os mais desavisados (oi, Lea Michele); memes e mais memes inundando as timelines; e uma série de listas sugerindo o que assistir para entender melhor tudo isso.
Um filme, porém, tem me feito falta nessas indicações: Ponto Cego (Blindspotting, 2018). O filme traz a relação de Collin (Daveed Diggs), negro, e seu melhor amigo Miles (Rafael Casal), branco/hispânico.
Discutindo racismo e violência policial, já passou da hora do filme viralizar.
Tentando sobreviver ileso aos últimos dias com um toque de recolher imposto pela sua liberdade condicional, Collin testemunha o assassinato de um negro por um policial e não tem certeza do que fazer sobre isso. Assim, num misto de flashbacks e ações lineares, o filme nos trás diferentes discussões necessárias e nunca tão atuais, porém sem perder seu humor ou ficar muito panfletário.
O filme, que teve uma bilheteria mediana nos EUA e quase insignificante no Brasil, é marcado por estreias: a do diretor mexicano Carlos López Estrada, que concorreu por ele ao Directors Guild of America (Outstanding Directorial Achievement in First-Time Feature Film); e de Diggs e Casal no roteiro de um longa.
A narrativa se passa em Oakland, cidade em que os roteiristas cresceram e que, não por acaso, tem sido muito ativa durante as manifestações das últimas semanas.
A familiaridade deles com a cidade, principalmente com os subúrbios, traz o cenário como personagem, como parte essencial da narrativa, contribuindo para uma sensação de realismo que enriquece e muito sua proposta.
Agora vamos aos spoilers. Já no primeiro ato começamos a entender que o filme vai muito além do crime cometido pelo policial. Collin é mais reservado, racional, quieto; Miles é negligente, inconsequente, teimoso… como então que o primeiro é responsável por um crime e o segundo não?
Algo não parece certo e esse sentimento de estranheza se concretiza ao desenrolar da história, quando entendemos que foram o racismo e o consequente privilégio branco que escolheram as sentenças de cada um. Num dos pontos altos do filme, Miles chega a justificar seu comportamento errático com o fato de precisar se provar aos outros, ao contrário de seu amigo, que já é um “negro grande de tranças” – para o que Collin responde que o negro que os policiais tanto procuram, na verdade é o próprio amigo.
É fácil fingir ser de uma etnia sem ter que enfrentar as reais consequências de tal. A sequência culmina numa cena de tirar o fôlego que dificilmente deixará minha memória: Collin voltando para casa com a arma que precisou tirar da mão do amigo quando ouvimos a sirene da polícia.
O clímax
Mas o clímax do filme está na resolução do enredo inicial: o policial que assassinou um jovem negro na frente de Collin. Agora, ele está do outro lado do gatilho e quem aponta a arma é o ex-presidiário, que, enfim, deixa extravasar toda a angústia acumulada em forma de rap, numa surpreendente e impactante homenagem à cultura negra norte-americana.
O fato dessa cena não ter viralizado tanto por aí quanto aquele vídeo de artistas brancos cantando músicas hippies é inaceitável.
A vida de Collin foi para sempre transformada por causa da sua sentença, mas a de Miles também. Os traumas de um não se equiparam com a culpa e o pesar do outro, mas deixa claro que o racismo estrutural traz consequências para qualquer um.
Blindspotting está disponível no Prime Vídeo.