O filme nacional da vez não podia passar batido pelo Chimichangas! Apesar de todos os imbróglios e polêmicas sobre o “fim” da Ancine e censura de projetos LGBTs, o cinema brasileiro ainda respira, e tem sido muito aceito fora do país também. Bacurau é um alento em meio a um cenário desolador para o mercado cinematográfico. 

Esse texto não tem intenção alguma de parecer uma crítica profissional, e muito menos falar “cinemequês”, mas é importante que se tenha um conteúdo sobre um filme brasileiro, como uma forma de abrir debates e relevância no meio digital. 

A quem quiser uma opinião mais fundamentada, de quem realmente estudou cinema e sabe falar de forma mais técnica e expor essas opiniões profissionais, segue abaixo o vídeo da Carol Moreira, que não possui spoilers e dá uma boa visão sobre o filme.

Antes de mais nada, vamos para a ficha técnica básica, para vocês xingarem a Globo de comunista, socialista e petralha. A direção do filme é composta por Kleber Mendonça Filho & Juliano Dornelles, em produção com Emilie Lesclaux, Said Ben Said, Michel Merkt e coprodução com a Globo Filmes.  

O elenco majoritário é brasileiro, porém há atores estrangeiros já conhecidos por nós também, como Udo Kier (Michael). Entre as figuras brazucas estão Sonia Braga (Domingas), Bárbara Colen (Teresa) e Thomas Aquino (Pacote). A ficha completa pode ser vista no próprio site da Globo Filmes

Os elogios não são à toa, apesar da contribuição francesa, toda a cultura e costumes brasileiros, e, principalmente, nordestinos, estão presentes no filme inteiro. Segue abaixo a sinopse para entenderem um pouco do plot da história, que, sinceramente, não é nem um pouco fácil de explicar. 

Sinopse: Num futuro recente, Bacurau, um povoado do sertão de Pernambuco, some misteriosamente do mapa. Quando uma série de assassinatos inexplicáveis começam a acontecer, os moradores da cidade tentam reagir. Mas como se defender de um inimigo desconhecido e implacável?

Apesar da intenção de parecer um filme de suspense, o andamento da história é muito mais clara para nós, brasileiros, do que para um estrangeiro. O Brasil é um país continental, e ainda subdesenvolvido. O início do filme já mostra as nossas estradas esburacadas, as dificuldades de acesso às mais diferentes cidades e a vida humilde e simples do povo do interior. O problema da seca é também logo mostrado, mas de uma forma diferente do que estamos acostumados. 

Funeral de Carmelita. Segurando o caixão estão Plínio e Teresa.

A “vida sofrida” não é o foco, não para espetacularizar a desgraça, mas para mostrar de forma crítica os problemas do país. Lembra na sinopse que diz que é um futuro próximo? Durante o filme todo há pistas de como está a situação política do país, e vamos pescando que a situação está um tanto caótica. Aparentemente tudo dá a entender que o Brasil passa por uma guerra civil, ou momentos bem turbulentos, vulgo, ditadura.

Mesmo que Bacurau seja no interior de Pernambuco, essa situação caótica acaba gerando reflexos pelo país inteiro, e também nessa cidadezinha de uma rua só. A água parece ser controlada por “gangues” e as desavenças regionais são frequentes por um território mais favorável. Logo vemos que um tal “Lunga” está sendo procurado por todos os cantos, a ponto de receber uma recompensa por sua cabeça. 

E a partir disso vemos o andamento da história. Temos a apresentação da cidade de Bacurau, e os principais personagens, todos reunidos para o funeral da matriarca da cidade: Carmelita. Carmelita parece ser aquelas pessoas que influenciou toda uma geração e todo mundo a conhece, a ama e a respeita. 

Plínio é um de seus filhos e um dos organizadores da pequena cidade, Teresa, filha de Plínio, é neta de Carmelita, e é uma das poucas cientistas que traz vacinas e medicamentos importantes em suas viagens pelo Brasil. Assim como uma cidade pequena e do interior do Brasil, tudo é bem contado e todo mundo se conhece e se ajuda. Domingas é a médica do único posto de saúde da cidade, e Plínio é o professor da única escola municipal. 

Todo esse contexto é tão importante pra história pois mostra como as comunidades brasileiras funcionam, e tudo é muito cultural e pé no chão. A cidade possui uma igreja, um bar de esquina, um prefeito safado que só “liga” para as pessoas em época de eleição, é tudo muito Brasil. Mas a tecnologia também faz parte do cotidiano dos habitantes, com televisões smart, celulares e acesso à Internet. E o mais importante: é tudo feito com muito respeito. 

O plot twist do filme

A parte mais importante do filme está no plot twist, e aí tem a ver com os assassinatos que começam. Tudo que eu falar a partir daqui é spoiler, então para quem não assistiu o filme ainda, tá ótimo parar por aqui e vai logo ver o filme que ainda está em cartaz. 

Bacurau sai do mapa magicamente por força estrangeira. Lembram que o país está passando por um momento turbulento? Pois é, aí que vem a mágica toda do filme. Se as cidades mais importantes do país estão em um verdadeiro caos, quem vai ligar para o que está acontecendo em uma cidade do interior de Pernambuco, de difícil acesso? Era exatamente isso que uns supremacistas brancos norte-americanos pensaram. 

Lunga, o cangaceiro moderno

Por isso bolaram um plano numa espécie de reality-show entre eles, para chegarem em um país de terceiro mundo e matar uma galera pobre e preta que ninguém dá uma foda, nem o prefeito da cidade (que se acha branco e não latino, diga-se de passagem), que concordou com todo o show pitoresco. 

E em nosso momento político atual, tudo faz sentido. Amazônia pegou fogo por semanas. Existiu o Dia do Fogo para queimar a floresta propositalmente. Porém, houve todo uma força do Executivo maior do país de tentar desmentir os fatos, de criar mentiras sobre a Amazônia, diminuir as imagens de satélite da Nasa e outras presepadas! 

O Brasil já é um país violento, com taxas de homicídios altíssimos. Porém, também há um inchaço desnecessário em um sistema prisional que não funciona. O Brasil teve um aumento de 18% nos homicídios de negros nos últimos 10 anos, enquanto que a taxa de homicídios de brancos caiu 12%. 71% das vítimas de homicídio são negros. Sem contar que não apenas nas mortes, mas os negros também estão entre os mais encarcerados, alguns que ainda estão apenas em prisão provisória por gramas de maconha

Se falamos de outras minorias os dados continuam estarrecedores e eu não quero deixá-los ainda mais revoltados com o que o Brasil já passa, mas o filme também trata de outras minorias. Há mulher transgênera, lésbica, bi, mulheres de tudo que é tipo. As que são abusadas também. 

Se o Brasil, em um momento político um pouco mais surreal do que estamos vivendo hoje, o que seria uma cidade de uma rua só sumir do mapa? O que seria matar umas centenas de pessoas que já são mortas diariamente pelos próprios brasileiros? A genialidade do filme não está em apenas respeitar a cultura brasileira, mas criar uma realidade que não é tão impossível assim de acontecer.

O gran finale

Mas a reviravolta é a mais magistral possível. Os norte-americanos, soberbos como são, que apenas ligam para a “América” deles, mostram como são minúsculos diante de uma comunidade unida e guerreira. E digo guerreira de uma forma metafórica, ou seja, de lutar contra as injustiças e procurar por honestidade e decência. Mas também guerreira de uma forma literal. 

E aí vem a grande sacada do filme. Não, o brasileiro não é ingênuo como pensam, não é burro como pensam, não é  inferior como pensam. E melhor, os nordestinos não são menores que ninguém. Melhor ainda, os pernambucanos não são menores que ninguém (a gente tem que parar de generalizar 9 estados como sendo uma coisa só, né não?).

Há uma passagem incrível do filme em que um casal paulista chega em Bacurau e a galera já saca que tá tudo muito estranho naqueles dois. Depois ficamos sabendo que os dois paulistas estão ajudando os norte-americanos no joguinho sanguinário deles. 

O homem branco hétero top diz aos americanos que ele vem de uma região rica, que o sudeste e o sul são regiões de descendência europeia, como a alemã e a italiana, então são diferentes do povo de Bacurau. E pra fechar com chave de ouro a ironia, o cara tem um cargo importante no setor jurídico de São Paulo (alô, isso soa demais TRF4 da “República de Curitiba”).  

Bom, que a gente sabe que sulista e paulista são um bando de racista, a gente sabe, mas a maneira com que o filme trata esse tema é maravilhoso demais. E ainda tem gente que diz que não temos que botar política no meio de entretenimento, né? Enfim, o recado final da parada é simplesmente magnífico. 

No início do filme há um take muito fechado no Museu da cidade de Bacurau. Ele está fechado, e é uma casinha simples. Não sabemos de primeira o que há exatamente nesse museu. Quando os norte-americanos, imbecis como são, chegam na cidade para matar a população toda, o povoado já se juntou e bolou um plano. E eles deixam o museu aberto. 

Quando um dos supremacistas entra no museu, a gente vê que tem vários quadros e uma homenagem a nada mais nada menos que Lampião e Maria Bonita, e todo o grupo de cangaceiros. Bacurau, aparentemente, veio dos remanescentes cangaceiros (alô, estamos em Pernambuco afinal). E bem, cangaceiros sabem muito bem lutar, não é? As armas históricas estavam no museu. 

Eles chamaram Lunga, o procurado no início do filme, para dar uma ajuda maior, e aquele sangue de cangaceiro passa por todas as veias do rapaz. O recado todo é de resistência. Manter viva a cultura do lugar, manter viva a liberdade das pessoas, manter viva a dignidade das pessoas, independentemente de sua etnia, classe social, identidade de gênero ou orientação sexual.

É uma verdadeira aula sobre o que é ser brasileiro e ser uma minoria. A resposta é simples: é lutar todo dia.

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