Se você gosta de cultura pop japonesa, com certeza já teve algum contato com a língua de alguma maneira, mas você já se perguntou como se dão as marcas linguísticas de gênero na Língua Japonesa? Existe masculino e feminino? Hoje vamos conversar um pouquinho sobre isso.
Língua e gênero: gramatical, social e referencial
Falar sobre gênero e língua às vezes se torna um assunto um tanto complexo, uma vez que existe mais de uma forma de enxergar e estudar a questão. Porém, alguns conceitos-base podem nos ajudar a pavimentar esse caminho e iniciar a discussão, ao menos em um nível mais básico.
A primeira ideia que você precisa ter em mente é que gênero gramatical/morfológico e gênero social são coisas diferentes.
O gênero gramatical diz respeito à estrutura morfológica da língua, portanto, é arbitrário e não tem necessariamente correlação nem com sexo biológico nem com gênero social.
Para ficar mais claro, vamos pensar na seguinte situação: em Língua Portuguesa nós dizemos “o sapato” e “a meia”. “Sapato” é um substantivo masculino e “meia” é um substantivo feminino, entretanto, esses objetos não são pessoas, eles sequer são seres vivos.
Há também o fato de que línguas diferentes podem possuir gêneros diferentes para uma mesma palavra. Por exemplo, em português falamos “a morte”, mas em alemão “morte” é um substantivo masculino.
Existem línguas que possuem dois gêneros gramaticais (português, espanhol, francês e demais línguas latinas), três gêneros (como o alemão) ou nenhum gênero gramatical (como o inglês). Este último caso também se encaixa na Língua Japonesa.
Há línguas com oito, às vezes doze gêneros gramaticais diferentes, o que demonstra que gênero gramatical é algo ligado a estrutura e não é a mesma coisa que gênero social.
E o gênero referencial?
Uma vez compreendido o fato de que gênero gramatical e gênero social não são a mesma coisa, entra em cena o gênero referencial.
O gênero referencial é o que relaciona as expressões linguísticas com a realidade não linguística, ou seja, identifica um referente como masculino, feminino ou nem masculino nem feminino. Trocando em miúdos, o gênero referencial é o que correlaciona gênero gramatical com gênero social.
A Língua Japonesa é uma língua que não possui flexão em gênero, número ou grau. Não existe masculino e feminino na Língua Japonesa, não existe plural exceto algumas exceções e nem aumentativo e diminutivo.
Veja bem, não é que a Língua Japonesa não expresse essas ideias, ela só não tem uma flexão morfológica utilizada para indicar esses conceitos. Portanto, como se apresentam as marcas de gênero? Como sabemos ao ler uma frase se é um homem ou uma mulher falando?
As marcas de gênero na Língua Japonesa
No japonês, assim como no inglês, existem palavras e expressões que possuem gênero referencial. Termos como onna (mulher), otoko (homem), shounen (menino), shoujo (menina) etc são palavras que possuem gênero referencial, pois criam uma correlação entre um signo linguístico e um referente humano real que é masculino ou feminino.
Além de palavras que designam gênero social ou papel social baseado em gênero, o japonês também possui formas femininas ou masculinas de falar e, é claro, os pronomes pessoais.
Vamos começar pelas formas femininas ou masculinas. Não é raro encontrar pela internet pessoas dizendo que o japonês é uma língua sensível no quesito gênero o que é, até certo ponto, verdade.
Há expressões que podem ser usadas por qualquer pessoa independente do gênero e outras equivalentes que tendem a ser utilizadas por homens ou por mulheres. Por exemplo, você pode pedir/mandar que alguém faça algo por você de três maneiras diferentes:
Escreva seu nome = 名前を書いてください (Namae wo kaitekudasai)
名前を書いて (Namae wo kaite)
名前を書いてくれ (Namae wo kaitekure)
Se essas três frases dizem praticamente a mesma coisa quando se trata de sentido, qual é a diferença? Bom, a diferença está no aspecto sintático e também no aspecto social.
Tekudasai é a forma imperativa polida, portanto, é uma forma educada de dar uma ordem. Te e tekure são formas mais coloquiais ou informais de expressar essa mesma ideia. Te é uma redução de tekudasai, como se fosse uma abreviação, enquanto tekure possui uma diferenciação sintática e morfológica: é a junção de te + kureru, porém com o verbo kureru na forma imperativa não polida, por isso kure.
Ao observarmos essas três expressões, é possível perceber uma nuance gramatical, mas há também uma questão social. A forma tekure é apenas utilizada por homens, mulheres vão utilizar o te ou a forma completa, tekudasai.
Isso quer dizer que mulheres nunca falam a forma tekureru? Não, essa forma pode ser usada de outra maneira, com uma ligeira diferença de tom e, nesse caso, é falada amplamente independente do gênero.
Entretanto, essa forma tekure com o verbo no imperativo e nesses contextos de ordem é mais usada por homens ou espera-se que seja usada por homens. Mulheres tendem a falar de forma mais polida e tende-se a esperar que mulheres falem utilizando formas mais polidas.
Por último, temos os pronomes pessoais. Em japonês, existem várias formas para pronomes pessoais e esses pronomes podem ser majoritariamente utilizados por homens ou mulheres.
Se você pesquisar em dicionários bilíngues, provavelmente vai encontrar uma relação mais ou menos assim: eu (watashi, boku, ore, watakushi e atashi), tu/você (anata, kimi, omae e kisama), ele (kare), ela (kanojo), nós (watashitachi; atashitachi e atashira; bokutachi e bokura; oretachi e orera; watakushidomo e wareware), vós (anatatachi, kimitachi; omaetachi e omaera; kimitachi e kimira; anatagata) eles (karera e karetachi) e elas (kanojotachi).
Bom, se a língua tem pronomes pessoais e formas masculinas e femininas de se falar, está morta a charada: homens falam boku e ore, mulheres falam atashi e todo mundo fala watashi, certo? Até a página dois sim, porém a questão não é assim tão simples sempre.
A língua no cotidiano: o uso no discurso e na ficção
Com exceção de watashi (utilizado por todas as pessoas) e watakushi, existem restrições quanto ao uso dos pronomes pessoais japoneses, sendo alguns mais utilizados por homens e outros por mulheres, porém nem tudo é preto no branco.
Quando falamos que existem restrições de uso dos pronomes, principalmente no que diz respeito à primeira pessoa do singular, pode parecer que dá pra depreender o gênero de alguém única e exclusivamente pelo pronome que essa pessoa utiliza, só que não necessariamente.
O gênero de uma pessoa, aqui falaremos sobre personagens fictícias, não necessariamente pode ser depreendido a partir única e exclusivamente da forma que ela fala ou da forma que ela se apresenta visualmente.
É claro, quando pensamos em personagens dentro de um padrão cis-hetero normativo, não é muito difícil, afinal, as culturas possuem expectativas de expressões de gênero e elas são visuais e também se relacionam com a forma como as pessoas falam.
A questão é que isso não é uma regra iquebrável e por vezes pode ser transgredido também por pessoas cis e/ou hetero.
Com certeza em algum momento você já se deparou com alguma personagem fictícia cujo gênero não parecia tão óbvio assim, podemos citar o Haku de Naruto, a Mizuki de Ikemen Girl to Hakoiri Musume, o Astolfo de Fate e Akito de Fruits Basket,
No caso dessas personagens, a aparência delas tende a fazer com o que o leitor/expectador infira que ela pertence ao gênero oposto e por vezes as outras personagens da história também inferem o mesmo.
Para ocorrer a demarcação do gênero correto, portanto, pode haver uma fala explícita na qual a personagem diz o próprio gênero ou pode haver o uso de um pronome.
No caso do Astolfo, o que demarca o gênero dele é o pronome, ele utiliza boku como uma forma de marcar que é um menino, mesmo estando fora do padrão masculino. No caso da Mizuki e Akito, o que demarca o gênero é uma fala. Em Ikemen, o leitor já sabe que a Mizuki é uma menina desde o início, mas a Satomi não, então tem uma cena em que a Mizuki conta isso pra Satomi.
Já sobre Akito [SPOILER DE FURUBA], o leitor descobre que ela é uma garota quando o Kureno conta e isso não muda em nada a maneira como ela se expressa [/ SPOILER DE FURUBA]. Já o Haku tanto utiliza o pronome boku quanto diz em sua primeira aparição que é um garoto.
Tomando esses personagens como exemplo, a gente consegue ao mesmo tempo ver como se aplicam essas restrições de uso, mas essas restrições de uso podem ser transgredidas.
Primeiro, todas essas personagens estão fora do padrão esperado para o gênero delas, mas elas continuam sendo o que elas são, independente da forma visual como elas se apresentam e nesses casos, o pronome é utilizado como uma marca de gênero, mas o oposto também pode acontecer.
Como já citado, watashi é um pronome sem restrição de uso, mas às vezes quando usado por um homem ele pode demonstrar modéstia e consideração pelo interlocutor. É uma forma mais respeitosa de se falar em contraposição ao ore, mas tudo depende do contexto.
O uso da segunda pessoa do singular pode ser desrespeitoso quando usado com alguém superior ou que não se tem intimidade. Além disso, kimi e omae tendem a ser usados majoritariamente por homens, entretanto, existem muitas músicas cantadas por intérpretes femininas que utilizam kimi, ou seja, mulheres também podem falar kimi.
Boku é um pronome usado majoritariamente por meninos e quando usado por homens adultos pode soar um tanto infantil ou pode ser uma expressão de humildade ou intimidade.
Entretanto, embora boku tenha um uso majoritariamente masculino, hoje em dia as mulheres falam boku, por vários motivos diferentes: porque são mulheres um tanto “masculinas” e foras da norma, porque estão em um ambiente exclusivamente feminino então não há a pressão social de soar rude ou simplesmente porque elas são jovens e gostam. E falar boku não torna uma mulher automaticamente um homem.
Para dar um exemplo mais concreto, vamos pensar na cantora japonesa Mirai, ex-membro da banda The Hoopers. Essa banda usava um conceito baseado no teatro de takarazuka e as integrantes eram definidas como ikemen joshi, que é meio “meninas bonitas como garotos”, pois ikemen é uma palavra usada para referenciar um homem bonito (especificamente um homem) e joshi é menina/mulher. No caso, o slogan da banda era “girls dressed as beautiful boys”.
Por causa do conceito de The Hoopers, as meninas da banda eram frequentemente referidas com o honorífico kun e, embora esse honorífico possa ser usado para mulheres também, no caso das integrantes da The Hoopers era uma forma de demarcar que elas eram masculinas, pelo fato de se vestirem como caras bonitos.
A banda acabou e a maioria das integrantes hoje em dia não trabalham mais no conceito ikemen joshi. Hoje em dia, várias delas se apresentam de forma muito feminina, performam feminilidade e até mudaram de nome artístico.
No caso da Mirai, ela é uma artista solo. Agora ela performa uma feminilidade que não performava na The Hoopers, só que alguns fãs continuam chamando-a de Mirai-kun e pra ela tá tudo bem. No Twitter, normalmente a Mirai usa watashi quando se refere a si mesma, mas às vezes usa boku ou mesmo bokutachi pra expressar nós.
Os planos promocionais do site dela pro lançamento do novo single usam a palavra ore: ore no tenshi, ore no princess e por aí vai. A Mirai de agora não é mais a Mirai atrelada ao conceito de ikemen joshi, porém mesmo assim ela utiliza formas majoritariamente masculinas de se expressar às vezes, seja falando sobre si mesma ou nos promocionais.
E nesse caso, há ainda outra questão, o próprio termo ikemen joshi é uma forma de demarcar que ainda que “se vistam como meninos” todas elas continuavam meninas. Okay, elas eram meninas fora do padrão de feminilidade, mas elas ainda eram (e são) meninas.
Palavras com e sem gênero referencial
Dito isto, até agora temos conversado sobre as expressões femininas e masculinas, mas e as expressões nem femininas e nem masculinas? Bom, como já dito anteriormente, o japonês é uma língua sem flexão de gênero, embora possua gênero referencial, desta maneira, não é muito difícil falar sobre alguém sem demarcar o gênero dessa pessoa.
Se pensarmos, por exemplo, em Akito, é muito mais fácil pra Natsuki Takaya escrever no mangá sem marcar gênero e deixar todo mundo acreditando que se trata de um menino, do que pro tradutor de língua portuguesa que tem de fazer uns malabarismos sintáticos.
Várias das palavras japonesas que têm gênero referencial, possuem um equivalente sem gênero referencial: otoko (homem), onna (mulher) e hito (pessoa); musume (filha), musuko (filho) e kodomo (pode ser usado no contexto de filhos); kareshi (namorado), kanojo (namorada) e koibito (quase literalmente: pessoa que você namora) etc. Veja bem, os pressupostos sociais continuam existindo, mas não tem uma marca linguística de gênero nessas palavras.
Certo, então delimitamos as peculiaridades linguísticas da Língua Japonesa, mas você deve estar se perguntando: por quê? Qual o sentido de toda essa discussão?
Bem, porque nós, enquanto leitores e consumidores de cultura pop japonesa, precisamos entender que às vezes é necessário mais do que um pronome ou a aparência de uma personagem para delimitar o gênero dela.
Portanto, haverá casos em que precisaremos de mais recursos para compreender a totalidade da personagem, como uma descrição mais detalhada, um olhar mais atento a outras formas de expressão ou mesmo uma ficha de personagem com explicações mais detalhadas.
O importante é não cair no erro de achar que uma palavra é usada sempre da mesma maneira e por um mesmo grupo de pessoas, ignorando outros contextos. A situação e o contexto são importantes na hora de interpretar o uso de um termo.
BIBLIOGRAFIA: Formas nominais de pronomes pessoais da língua japonesa moderna
BREVES CONSIDERAQOES SOBRE AS
EXPRESSOES DE TRATAMENTO DA LÍNGUA JAPONESA