O Período Edo da história japonesa foi marcada pela superioridade do homem tomada pelas classes samurais e pelo Estado que, enquanto estruturado pela figura masculina no poder, promove diretamente a opressão masculina que as mulheres sofrem. Assim, anime que retrata esse período da história japonesa, Gintama traz discussões bastante importantes e uma delas é a representação feminina diante da opressão do Estado e outras questões do preconceito e machismo.
Gintama é um anime shounen, adaptação do mangá de Sorachi Hideaki de 2003 que, recentemente, sua história foi concluída. O anime foi feito pelo estúdio Sunrise e mais tarde, pela Bandai Namco Pictures. Acompanhamos a história de Sakata Gintoki, um samurai que lutou contra os Amantos, alienígenas que tomaram conta da Terra. Assim, após a derrota, o samurai abriu seu negócio chamado Yorozuya (tradução: Fazemos Tudo). Neste lugar, Gintoki oferece serviços de ajuda em troca de dinheiro. Durante o começo do anime, Shinpachi e Kagura se juntam ao samurai para trabalhar com ele.
Mesmo conhecido por ser um anime de comédia, temos que ressaltar alguns temas bastante importantes trabalhados em Gintama, além da luta das mulheres que buscam quebrar os estereótipos, não só da história que apresenta elementos machistas, mas também dos que encontramos em mangás. Acompanhamos então discussões sobre a sexualização, transfobia, escravização, ocidentalização e entre outros temas muito importantes que se passam no período Edo, que é retratado no anime, época que o Japão vivia a ditadura feudal do xogunato Tokugawa.
Com a falta de representatividade feminina em animes e mangás shounens, Gintama consegue se destacar. Mesmo que ainda seja difícil encontrar protagonistas femininas em obras shounens, cada personagem feminina trabalhada em Gintama tem uma história para contar, trabalhando suas inseguranças e tendo um papel muito fundamental na história do anime, trabalhando diante da opressão masculina que é mostrada no Período Edo.
A representação das personagens femininas em Gintama
Primeiramente, temos que deixar claro que as personagens femininas de Gintama não são apenas fortes por terem fortes técnicas de luta. É importante sim este espaço que o autor de Gintama dá as personagens femininas para que elas lutem mas não podemos focar apenas sobre isso no momento que falamos sobre representatividade feminina no anime.
Assim, um dos fatores muito interessantes que Sorachi usa em seu mangá é a quebra da quarta parede, que já comentei em um texto aqui no site. Os personagens sabem que estão em uma animação japonesa e conversam diretamente com o público, falando sobre questões de produção do anime. Assim, dado este espaço, é muito comum vermos estes personagens questionando alguns elementos que são muito usados em criação de animes, inclusive de histórias da demografia shounen.
Portanto, o uso da quebra da quarta parede dá espaço para estas personagens femininas questionarem os padrões impostos na criação de personagens femininos. Um exemplo disto é Kagura, uma das personagens principais do anime. A Karla Florencio do Delirium Nerd aponta que “Kagura não perde oportunidades de mencionar como ela foge dos padrões impostos nas personagens femininas, sendo alguém que come muito, fala palavrão e chama homens pervertidos de sujos.”
A representação da Kagura levantou bastante questionamentos. Isso foi reforçado em uma pesquisa feita pelo site Goo em 2016, onde os fãs japoneses elegeram as piores heroínas da Shounen Jump e Kagura ficou em quinto lugar. Isso pode se dar muito ao comportamento da personagem, que não se parece com outras personagens que supostariam são mais “delicadas”, como os fãs dizem. Mas aqueles que já são familiarizados com Gintama, sabem como a personagem é segura de si.
Não só Kagura, mas outras personagens são retratadas em posição de liderança, onde cada uma tem sua história de resistência. Temos por exemplo Tsukuyo que é líder da força policial de Yoshiwara. Ou mesmo que vice-líderes dos grupos Oniwabanshuu e Mimawarigumi, Sacchan e Nobume se destacam ao comandar suas organizações, como também Mutsu e Makato. Vale ressaltar também sobre o Four Devas. Grupo de 4 pessoas que comandam o Distrito de Kabukicho, composto por três mulheres, sendo que uma delas é trans.
Temos outras personagens como Otae, Otose, Otsu e entre outras que são também bastante importantes para a trama e que possuem histórias de resistência contra a sociedade que são oprimidas.
Histórias de resistência
Yoshiwara em Chamas
As personagens em Gintama, quando introduzidos seus conflitos ao espectador, o catalisador muitas vezes é por conta da opressão masculina e o machismo do período de Edo. Podemos citar primeiramente um dos arcos mais importantes que é demonstrado isso, o “Yoshiwara em Chamas”.
Somos apresentados à cidade Yoshiwara, cidade subterrânea que tem o maior ponto de prostituição. É um lugar bastante frequentado por membros do alto escalão do governo, como também os próprios Xoguns. Em Yoshiwara, vemos mulheres presas, outras que tentaram fugir são mortas, e muitas vezes, mulheres grávidas ou até doentes. As mulheres da cidade acabam sendo escravas sexuais, que foram vendidas e exploradas desde crianças. E uma delas no anime é Tsukuyo, que foi vendida pelos pais logo quando era criança.
Após vendida, Tsukuyo começou seu treinamento para virar cortesã. Mas para fugir deste destino, ela corta seu rosto, formando cicatrizes, onde assim ela foi considerada uma mulher fora dos padrões de beleza. Tsukuyo se torna então líder da força policial de Yoshiwara. Ela impede as mulheres escravas de Yoshiwara fugissem. Só que por trás, Tsukuyo, na verdade, tenta salvar essas mulheres de abusos e também da morte.
Para se tornar líder da força policial, Tsukuyo foi treinada por Jiraiya, seu professor que afirmava que a femilidade acabava trazendo fraqueza. Ele também chegou a ser bastante abusivo com a própria Tsukuyo. Entretanto, quando acompanhamos o arco de desenvolvimento da personagem, Tsukuyo entende que ela pode ser forte da maneira que ela é.
Voltando a falar do arco de Yoshiwara, percebemos que Hinowa é uma mulher muito importante para todas as mulheres de Yoshiwara. As mulheres da cidade tem certa empatia com Hinowa pela mesma passar as mesmas dificuldades que elas. Ela é um símbolo de resistência e sobrevivência para aquelas mulheres.
Hinowa teve suas pernas cortadas para nunca mais tentar fugir de Yoshiwara e muito menos ajudar as mulheres e crianças necessitadas. Mas mesmo assim, não desistiu de ajudar. Ela foi reconhecida como “Sol de Yoshiwara”, um símbolo importante, pois mesmo em momentos de escuridão que a cidade sofria (ainda mais por ser uma cidade subterrânea que o sol não iluminava), ela é o sol, um símbolo que as mulheres seguiam para continuar vivendo.
Cortesã da Nação
Outro arco muito importante para representar essa luta das mulheres contra o Estado é “Cortesã da Nação”. Aqui, não só os elementos dos arcos, mas também as personagens, são envolvidas em uma luta muito importante contra a política em Edo que, mais tarde, resultará em conflitos para arcos posteriores.
O arco começa com Gintoki descobrindo que a cortesã mais bonita de Yoshiwara é Suzuran, uma senhora idosa. O samurai descobre que ela estava esperando para voltar a ver seu amado que prometeu vê-la na próxima lua cheia.
Então, Gintoki e Tsukuyo decidem ir atrás do amado de Suzuran. Entretanto, os dois descobrem que o homem foi um Xogum, e assim, eles invadem o palácio do Xogunato e então vemos umas das cenas mais importantes do arco. Kagura, Tsukuyo e Imai Nobume, a vice-capitã do Mimawarigumi, que acaba se juntando a luta, declaram guerra contra o Estado, em nome de todas as mulheres que foram exploradas pelo governo.
Na cena, os soldados do Xogum partem ao ataque. Nobume diz que esta nação não respeita as mulheres. Tsukuyo complementa que esta nação foi construída pelas lágrimas dessas mulheres, mas essa mesma nação é incapaz de encará-las ou muito menos derrotá-las.
É um momento muito importante que o anime nos deixa claro a importância da luta contra as medidas do governo, muito mais em Yoshiwara. As mulheres da cidade sofreram anos pela prostituição, escravismo, assédio, doenças e até a morte. Quando as três personagens têm esse momento, de declarar guerra contra o xogunato, elas estão declarando guerra por aquelas que sofreram e morreram em Yoshiwara e que foram exploradas pelo governo.
Adeus Shinsengumi
O arco “Adeus Shinsengumi” necessariamente não foca totalmente na luta das mulheres contra o governo, mas desencadeia questões muito importantes que rodeiam as personagens femininas no anime.
Situando, Nobunobu é o novo Xogum após a morte de Shige Shige. Portanto, a Shinsengumi, tropa especial comandado pelo antigo Xogum, precisa ser dissolvida e prendem Isao Kondo, o chefe da Shinsengumi. Mimawarigumi é a força principal então do novo governo. Esse arco é baseado historicamente no período de Edo da história japonesa, em que na Guerra de Boshin, se dá a queda do corrompido Xogunato de Tokugawa e Restauração do Período Meiji.
Assim, no segundo episódio do arco, já nos é apresentando uma cena muito importante. O Xogum Nobunobu, junto com Sasaki, chefe da Mimawarigumi, visitam o cabaré que trabalha Shimura Tae, irmã mais velha de Shinpachi. O novo Xogum começa uma confusão, onde seus subordinados atacam duas mulheres que trabalham lá, e assim, Tae confronta Sasaki e Nobunobu.
“Ferem pessoas inocentes e deixam o mundo conveniente apenas para vocês mesmos. Está é a nova era? Quem que vai seguir vocês? Que tipo de Xogum não protege seu país, seu povo? Que tipo de polícia?”
Shimura Tae, episódio 309 (o Herói Tarda, Mas Não Falha)
Nobunobu escuta essas palavras e responde Tae, enquanto os membros da Mimawarigumi seguram ela. Nobunobu ameaça matar ela, dizendo que tolos são aqueles que mostram as suas presas nesta nova era. Tae responde que, tanto a polícia de verdade, quanto samurais de verdade, não fazem isto que eles estão fazendo. Ela diz essas falas sem desviar o olhar do Xogum, enfrentando a maior autoridade do país.
Gintoki, até reforça depois do soco que ele dá em Nobunobu que, se o Xogum queria saber como os plebeus vivem, visitando um cabaré, e não está preparado par receber o troco, que ele não apareça. Katsura, líder de uma das organizações contra o governo de Edo, minutos depois aparece, reforçando que não espera nada do governo e nem da polícia, dizendo que eles mesmos precisam fazer essa revolução.
Mais tarde, por conta dos acontecimentos do arco “Adeus Shinsengumi”, observamos mudanças. Soyo Tokugawa, irmã mais nova de Shige Shige, vira a primeira ministra. Soyo é uma garota nova que nos mostra que ela não é tão forte lutando, tendo que ser protegida algumas vezes pela própria polícia do Xogunato. Mas quando se trata de política, de seguir os passos de seu irmão, ela sempre mostrou bastante determinação.
E também, por conta da morte de Sasaki, e da dissolução da Shinsengumi e da Mimawarigumi, Soyo cria a Agência Nacional de Polícia, dando o cargo a Nobume, uma das mulheres mais fortes de Gintama. Assim, ela é a primeira mulher que vira Comissária Geral da polícia.
Construção das personagens em Gintama
Respeito mútuo
Um dos fatores mais interessantes em Gintama que deve ser mencionado é a relação das personagens. Cada personagem que é envolvida na história do anime, cria uma forte conexão com as outras personagens femininas. É um relacionamento muitas vezes de aprendizagem e até de admiração.
Dando exemplo primeiramente de Kagura, ela chama as outras personagens como “irmãs”, inclusive Tae, que ela tem uma grande aproximação e também admiração. Kagura se aproxima de outras mulheres no anime também, mostrando como é esta ligação e apoio entre as mulheres em Gintama. Kagura então ganha espaço no anime tanto para amadurecer e conhecer mais sobre as questões femininas que as outras personagens apresentam e enfrentam durante o anime, já que a mesma nunca teve uma relação de amizade com outra pessoa do mesmo sexo.
Um fator que muitos animes gostam de apresentar é a rivalidade feminina. Em Gintama, às vezes, possui um ou outro comentário entre elas por alívio cômico. Mas tratando com seriedade, as mulheres se respeitam. O maior exemplo é Sacchan e Tsukuyo, onde ambas sabem que elas gostam de Gintoki, mas não se desrespeitam por isso. São mulheres que, além de a grande maioria demonstrar liderança, ainda são fiéis, não só entre elas, mas entre seus companheiros.
Mais um elemento que Sorachi trabalha entre seus personagens é igualdade. Personagens masculinos respeitam as mulheres e vice versa. Como por exemplo, Katsura chama Kagura de “Líder”, mostrando extremo respeito com a personagem. Okita Sougo, comandante da primeira divisão da Shinsengumi, que sempre está lutando contra Kagura, mostra bastante respeito sobre sua rival, onde o respeito é retribuído pela garota também.
Podemos citar também o relacionamento entre Sakamoto e Mutsu, que comandam a Kaientai. O pirata intergalático respeita bastante Mutsu, onde mesmo Sakamoto sendo o líder do grupo, Mutsu que dirige a empresa. Outra relação interessante a ser citada é Takasugi e Matako, onde a mesma sente admiração por Takasugi, e com certeza o ama. Eles têm uma aproximação bastante importante, de uma maneira que não se espera que um guerreiro implacável permita.
É criado então uma ideia de respeito mútuo, onde os personagens masculinos entendem as lutas das mulheres. E nestes momentos, em que o momento é de representatividade feminina, os personagens masculinos não roubam a cena, é o momento delas protagonizarem. Os personagens masculinos também criam um certo respeito pelas personagens femininas, uma questão muito interessante e importante em Gintama, onde ninguém é questionado pela sua luta e seus confrontos internos. Onde todos que possuem basicamente o mesmo inimigo, o Estado e os Amantos (questão da ocidentalização), acabam entendendo aos poucos a luta de cada um.
Amadurecimento e força interna das personagens
Mesmo comentando acima que os personagens de Gintama criam a ideia de respeito mútuo, temos ainda casos a parte. A própria Kagura, personagem principal, teve muitas vezes que demonstrar sua força para sua família. Inclusive para seu irmão mais velho Kamui, que nunca acreditava nela.
Kagura é uma Yato, um clã poderoso de Amantos. Ela vai para Terra para tentar fugir das batalhas sangrentas que seu clã prática. Ao aparecer pela primeira vez, é retratada como garota “pirralha” que causa problemas. Mas aos poucos, vamos vendo seu amadurecimento na história, mesmo que seja sutil no começo do anime. Ela é uma das personagens que mais criticam os padrões machistas impostos pela sociedade, conversando com os fãs diretamente. Kagura não deixa de criticar o sistema do xogunato e a shinsengumi, que ela delicadamente chama eles de “ladrões de impostos”.
A garota, nos primeiros arcos do anime, teve que demonstrar para seu pai, Umibozu, que era uma garota segura de si e que poderia viver com Gintoki e Shinpachi na Terra. Tanto Umibozu, e Kamui, enxergavam Kagura como uma garota insegura e talvez até fraca. Quando Kagura encontra Kamui depois de muito tempo em Yoshiwara, o mesmo fala que não vai lutar com ela por ainda ser uma garota fraca.
Kagura então tem um crescimento bastante importante em Gintama. Ela vai aprendendo não só com Gintoki e Shinpachi, mas exclusivamente com as mulheres que são suas amigas, sobre este amadurecimento. E um dos arcos mais importantes, “Arco Rokkaku”, é onde ela finalmente mostra para o seu irmão a garota forte, não só de poder, mas pessoalmente, que ela se tornou. Ela demonstra que não precisou ainda recorrer ao “poder Yato”, que é o descontrole dos Yatos, o que Kamui acreditava que aquilo os tornavam forte. Ela também é o motivo que faz sua família ter a conexão que ela tanto sonhava em ter outra vez.
A importância das personagens femininas na luta em Gintama
Em busca de retratar grupos de resistência que lutam contra o Xogunato no Período de Edo, Gintama trabalha com temas muito importantes em que os personagens precisam enfrentar, desde a sexualização, abuso, machismo, opressão… Por mais que Gintama seja um anime forte pela sua comédia, temos também que enaltecer as lutas que os personagens enfrentam durante a história.
E as lutas das personagens femininas não são deixadas de lado, ainda mais em arcos específicos que citei ao longo do texto. As personagens femininas então buscam lutar contra a opressão do governo e do sistema dos samurais que ela convivem. Outras críticas que as personagens femininas buscam debater, com o uso da quebra da quarta parede, são sobre padrões impostos na criação de personagens femininos em diferentes mangás shounens.
Outras personagens que acabei não citando, mas que merecem destaque também, Otose, a senhora que aluga o apartamento que Gintoki mora, que tem uma história incrível de superação, onde seu ex-marido acaba falecendo e ela sempre está disposta a lutar contra o sistema que vive. Temos também até a Otsu, uma pop idol, que sempre enfrenta problemas, alguns até machistas, no mercado da música. Temos também Mutsu e Makato, que trabalham com dois homens em organizações diferentes, mas que tem um espaço importante nestas organizações para comandar e entre outras personagens.
Mesmo que encontramos alguns elementos em Gintama que ainda precisam ser debatidos pela forma que eles são representados, não podemos deixar de dizer que o anime tem uma representatividade feminina muito importante. Ainda mais construída em um período no Japão marcado pela diminuição dos direitos das mulheres.