Aos amantes do seriado norte-americano Queer Eye, os 5 apresentadores e transformadores da vida das pessoas resolveram ir para o Japão e fizeram um especial em apenas 1 mês de gravação. O reality show de sucesso da Netflix até então possui 5 temporadas de 8 episódios, porém o especial do Japão possui apenas 4.
O programa reúne 5 fabulosos da comunidade LGBT para ajudar pessoas a serem mais confiantes, a saberem cozinhar de forma simples, terem uma casa mais organizada, cuidados com o cabelo e a pele e também a se vestirem melhor. As temporadas todas são nos EUA, mas agora eles tentaram fazer o mesmo trabalho de transformação em outro país.
Os 5 fabulosos são compostos por Karamo Brown (motivacional), Antoni Porowski (chef), Bobby Berk (designer de interiores), Jonathan Van Ness (cabeleireiro e maquiador) e Tan France (moda). Já falamos mais sobre Queer Eye aqui no Chimichangas, mas o especial Japão que fizeram merece muito ser discutido e apresentado.
Como o programa funciona
Os 5 fabulosos – como eles são chamados no reality – precisam ajeitar e melhorar vida de uma pessoa que quer ajuda em apenas 1 semana. A ideia primária era ajudar os homens heterossexuais, que possuem também barreiras sociais no mundo inteiro: em como devem se portar, agir, conversar e se vestir.
Porém tudo acabou se tornando extremamente mais livre e diverso e atualmente os 5 representantes ajudam qualquer pessoa. Qualquer mesmo. Não importa a religião, classe, etnia, gênero ou orientação sexual. Desde que sejam maiores de 18 anos, tudo é válido.
Partindo desse princípio, a pessoa que é ajudada recebe uma série de dicas e opiniões dos especialistas, de acordo com suas profissões. Portanto o Karamo tenta entender melhor os hábitos e a história da pessoa para poder deixá-la mais autoconfiante e comunicativa. Já o Tan procura pelos padrões de roupas que a pessoa usa para levá-la a um local em que ela veja mais opções e se sinta ela mesma.
Cada um dos especialistas acabam transformando a pessoa em uma única semana. Não são mudanças profundas (às vezes são), porém são pequenos ajustes que faz a pessoa se sentir melhor, se amando, se expressando como gostaria e também se sentindo confortável em ser o que é e morar onde mora. Enfim, é um reality que tenta tornar as pessoas melhores.
Como são 5 apresentadores da comunidade LGBT, os ensinamentos e as mensagens mostram muita empatia, amor, e compreensão, e esses temperos que fazem o seriado ser tão incrível como ele é. Portanto, essas mesmas características empregadas na sociedade estadunidense foram levadas para a realidade japonesa, e isso também torna tudo muito interessante.
Os casos de Queer Eye no Japão
Como a temporada especial é composta por apenas 4 episódios, o reality não conseguiu abranger as tantas possibilidades que o Japão pode trazer, mas ainda assim nos traz muitas representações interessantes da sociedade japonesa de Tóquio, a capital, e metrópole.
Por vezes temos que tomar cuidado de não generalizar as vivências japonesas apenas por um exemplo de modo de vida, porém em Queer Eye a cultura japonesa é extremamente presente. Não se trata apenas em ajudar o visual e a autoestima de um japonês. Se trata em ouvir sua história, suas dores, problemas e visão que possui da sociedade japonesa.
Tudo isso é feito com muito cuidado pelos 5 fabulosos, que não possuem descendência asiática alguma. Os 4 episódios são simplesmente incríveis. O especial acabou e o sentimento foi de querer mais. Eu falarei brevemente dos casos, porém já saibam que daqui pra frente tem spoiler, então se você não viu Queer Eye Japão, não continue lendo.
Episódio 1 – O caso de Yoko-san
Uma mulher de 57 anos recebeu a ajuda dos 5 fabulosos a pedido de sua melhor amiga. Essa mulher se chama Yoko, é enfermeira e possui uma casa de repouso para idosos. A casa de Yoko é relativamente pequena, portanto é uma casa em que ela priorizou totalmente seus pacientes.
Toda a comida, espaço, banho e lazer são feitos por ela, com carinho e atenção. Mas, para isso, ela negligencia demais ela mesma. Não se cuida, não procura roupas novas, não possui um quarto na casa para dormir, dormindo normalmente em corredores, na sala e de qualquer jeito.
Com os anos passando, ela ainda comprou a propriedade ao lado da sua, e fez uma casa comunitária, com eventos culturais e de lazer em que ela pudesse reunir os idosos que ela cuidava, com as crianças da região que queriam participar.
Portanto ela possui um sentimento de altruísmo enorme, mas deixa a si mesma de lado. É uma pessoa perfeita para os 5 fabulosos ajudarem. A mensagem mais incrível nesse primeiro episódio é a auto aceitação de uma mulher chegando na terceira idade. Yoko explica que é muito comum no Japão que as mulheres mais velhas deixem de lado qualquer linha de vaidade, pois não se sentem exatamente mais mulheres.
E o trabalho dos 5 fabulosos é justamente questionar esses padrões de gênero e beleza. Eles conseguem em uma semana fazer Yoko se sentir viva, mulher, totalmente apta a se relacionar normalmente, a se cuidar e se preocupar com saúde e qualidade de vida. Yoko-san é uma pessoa incrível e inspiradora.
Episódio 2 – O caso de Kan
Muito se fala se o ativismo LGBT é presente no Japão. Os principais meios culturais estão cada vez mais abertos, mas ainda há inúmeros problemas na sociedade japonesa. E o episódio 2 sintetiza bastante como é a realidade de um homem gay no Japão.
Kan é um homem que trabalha com marketing em uma empresa de cosméticos, mas que viveu alguns anos de sua vida fora do Japão. Foi no Canadá que ele se aceitou e se assumiu, e depois ficou algumas temporadas em Londres, onde ele encontrou seu atual namorado, Tom. A história deles é melhor contada em um outro texto, que recomendo fortemente que vocês leiam depois.
Porém ele voltou ao Japão, e os últimos anos foram bem sufocantes e complicados para o Kan, principalmente em relação à sua orientação e ao seu relacionamento internacional à distância. Tudo da vida desse rapaz é inspirador, podemos tê-lo como um grande herói, pois ele segura uma barra difícil pra caramba para viver feliz.
O Japão não possui muitas leis que protegem os LGBTs, porém há Paradas e há locais específicos para a comunidade. Nesse episódio, os 5 fabulosos vão a alguns lugares e apresentam outros ícones LGBTs que fazem nosso coraçãozinho amolecer de amor. Sim, a comunidade LGBT no Japão é presente, mesmo que ela seja mais discreta e menor do que países ocidentais.
Através do Kan podemos ver que o país tem avançado na discussão de gênero e orientação sexual, porém o problema maior ainda é a opressão social. Kan explica claramente que ele tem uma dificuldade grande de mostrar 1% de sua individualidade, pois a sociedade japonesa é muito coletivista no sentido de que todos têm de ser iguais (se vestirem iguais, agirem iguais, falarem iguais etc).
Caso você não se adapte a essa norma social, você é excluído rapidamente. Por isso ao voltar para o Japão, Kan se sentiu extremamente sozinho e impossibilitado de falar abertamente sobre certas coisas e mostrar, mesmo que sutilmente, sua homossexualidade. Um de seus objetivos é andar de mãos dadas com Tom em Tóquio (isso não amolece o coração?? Nossa senhora).
As mensagens nesse episódio são tão fortes e tão lindas, tão empáticas que é capaz de você chorar vendo! É muito sensível, e com final feliz.
Episódio 3 – O caso de Kae
Dessa vez os 5 fabulosos tinham uma missão de ajudar Kae, uma jovem de 23 anos, aspirante a mangaká e desenhista. Kae vive com sua irmã e sua mãe em Tóquio, e possui problemas em casa, com sua personalidade, aparência e confiança no seu trabalho. O quarto dela é surreal de bagunçado, e ela é vista como preguiçosa e bagunceira pela mãe.
Ela dorme no quarto com sua irmã e isso também já trouxe alguns problemas. Assim como muitos jovens japoneses, Kae sofreu bullying no fundamental e colegial, e isso respingou bastante na construção de sua personalidade. Kae é tímida, negativa sobre si mesma e bem introspectiva.
Como qualquer episódio de Queer Eye, os 5 fabulosos não querem mudar a Kae. Eles querem que ela veja as suas próprias qualidades e tenha mais coragem e confiança para agir, falar e se portar no mundo, mesmo com as dores e problemas. Portanto, tudo bem a Kae ser tímida e introspectiva, porém algumas melhorias podem ser feitas para que essas características não se juntem com a negatividade forte e isso se torne uma ansiedade patológica ou mesmo depressão.
Os otakus de plantão vão gostar bastante da Kae e de seus objetivos de ser mangaká, mas uma lição importante do episódio é o quanto os 5 fabulosos conseguiram fazer Kae perceber que ela é linda, que ela é criativa, que ela é incrível como ela é e pode conversar com sua família sobre qualquer coisa.
Nesse episódio também temos uma maior discussão sobre corpos femininos, e uma comediante plus size foi convidada para falar melhor com Kae, que se considera “gorda” e de corpo feio. Assistir a esse episódio revitaliza nossa auto-aceitação e faz a gente aceitar as diferenças, tirando de vez a ideia burra de padrão de beleza que fere muitas mulheres no mundo inteiro.
Episódio 4 – O caso de Makoto
O tradicional caso do homem hétero e extremamente fechado sentimentalmente não podia ficar de fora. Aqui os 5 fabulosos tiveram que fazer uma transformação mais profunda para conseguir atingir Makoto, um homem de 37 anos, diretor de rádio e casado há 7 anos com sua mulher.
Makoto e sua esposa vivem em um apto minúsculo em Tóquio e estão há cerca de 4 anos sem qualquer relação sexual. Dificilmente se comunicam e fazem qualquer tipo evento de casal. Não há sintonia, não há demonstração de sentimentos e passou-se os anos e isso se tornou uma bola de neve gigante para resolver.
Para piorar, a casa é extremamente mal organizada, sem espaço nenhum para pisar (sim, pisar!). Não há um lugar adequado para comer, dormir, trabalhar, nada, é tudo bem sufocante. Nenhum dos dois cozinham, então na cozinha só tem alguns pacotes vencidos de comida há anos. É um desleixo total mesmo, bem parecido com episódios do tradicional Queer Eye, com estadunidenses acumuladores e totalmente alheios à sua moradia.
É realmente uma bela representação cultural de modo de vida de muita gente em Tóquio, e é simplesmente uma aula antropológica o episódio. Mensagens são reforçadas constantemente sobre auto-aceitação e autoconfiança, que são os pilares para o Makoto dar os passos adiantes para mudar um pouco seu relacionamento com a esposa e seu modo de vida, que tem afetado negativamente seu modo de ser.
Aqui a gente fica sabendo que os japoneses, em geral, evitam terapias, pois não são formas muito bem aceitas e reforçadas. Sendo assim, cuidar da saúde mental é mais difícil no Japão do que nos EUA, por exemplo. A conclusão do episódio é maravilhosa e nos dá esperança de que essa opressão social possa diminuir no Japão, pois realmente afeta TODOS.
Conclusão
Os 4 episódios são maravilhosos, são sensíveis e nos dão lições ótimas para entender mais sobre a sociedade japonesa e como temos que ter respeito com essas diferenças de hábitos e modos de vida, porém ainda assim com o senso crítico de que alguns desses hábitos podem impactar negativamente na vida das pessoas.
A mensagem mais importante e que foi mais discutida nos 4 episódios foi a de representação de carinho. Em todos os episódios os representantes japoneses explicaram que a sociedade japonesa não sabe bem demonstrar afeto, dizer palavras de carinho, como “eu te amo” e isso acaba reprimindo muitos deles.
Essas problemáticas não afetam apenas relacionamentos românticos, mas toda e qualquer cadeia de relacionamento, o que dificulta a comunicação, dificulta a liberdade de se expressar e diversas outras questões sociais. Esse especial na verdade me deu mais vontade de estudar um pouco mais as questões culturais e sociais do Japão.