A 5ª temporada de She-ra estreou na Netflix no dia 15 de maio e toda a expectativa do fandom finalmente teve fim, preenchendo todo tipo de felicidade, surto e agradecimento à Noelle Stevenson, DreamWorks e toda a equipe de produção da animação. Esses sentimentos todos não foram à toa, a última temporada fechou todo o ciclo de desenvolvimento dos personagens e das protagonistas. 

She-ra e as Princesas do Poder é uma animação completa, com personagens carismáticos, boa trama, bons vilões e com um desfecho que está de acordo com a história apresentada. A competência em criar algo simples, mas muito bem amarrado, será lembrada pela posteridade e será usada como exemplo a ser seguido. Disso não há dúvidas.

Mas há algo além de uma história bem construída e personagens coerentes e com desenvolvimento, e se chama diversidade. Ainda nos anos 80 e 90 as produções animadas tinham limitações tecnológicas imensas, e o custo de produção era bem mais caro, o que fez com que as histórias não tivessem tanta amarração e pudessem terminar com chave de ouro. 

Por isso, creio ser quase impossível comparar She-ra dos anos 80 com essa nova produção da Netflix. Ainda assim, a nova She-ra traz muitas referências ao desenho antigo, respeitando seu legado na história dos desenhos animados.

https://twitter.com/becsksink/status/1265365815525769221

Lembrando que este texto vai falar mais da última temporada, então para os que não viram nada ainda de She-ra, temos um texto sobre o início da série, praticamente sem nenhum tipo de spoiler, e outro sobre a Felina, que é um dos personagens mais controversos, mas que teve muitas mudanças no decorrer da história.

O que quer dizer diversidade?

Falar sobre diversidade nesse caso é literalmente falar de pluralidade de identidades. A nova animação de She-ra tem tudo isso e mais um pouco. Etéria tem um universo plural, com uma diversidade cultural, de raças, etnias, poderes, e até mesmo sexualidade. O que foi estabelecido lá na década de 80 teve uma roupagem bem mais completa para os tempos de hoje. 

E essa roupagem não é apenas de personagens diferentes, com personalidades diferentes. Falo mesmo de explorar uma produção animada diferente. Os personagens possuem alturas diferentes, formatos de corpos diferentes, e tudo isso é possível porque a tecnologia permite criar algo diferente no tempo correto.

Toda a equipe da DreamWorks sabe disso e conseguiu pegar o universo de She-ra antigo e ampliá-lo de uma forma muito mais completa. Alguns podem se perguntar porque os traços são mais infantilizados e mais coloridos, mas essa pergunta tem uma resposta muito simples: são características que atendem plenamente os mais jovens. 

A colorização em desenhos ocidentais teve muitos avanços. Animações da DC, que são adaptações de quadrinhos, normalmente possuem pegadas mais sérias e mais pesadas, mas ainda assim as cores mais vivas estão presentes em personagens como Harley Quinn

O público-alvo de She-ra são crianças, pré-adolescentes e adolescentes, pedir por um tom mais sangrento, violento e pesado não é o correto, afinal é para ser uma mídia que fala sobre rivalidade, amor e conflitos de uma forma mais leve. Por isso a animação tem vários tons de comédia e maior aceitação da diferença, para que todos os personagens encontrem seus lugares naquele universo sem o ódio alheio. 

A mensagem da 5ª temporada

Ao contrário das temporadas passadas, em que Hordak se mostrava como um vilão poderoso, que tinha ao seu lado uma feiticeira de magia negra, como a Sombria (Shadow Weaver), a 5ª temporada teve a construção da redenção e de resignificação para todos os personagens da 1ª temporada. 

Para os que já assistiram algo de She-ra, podem perceber que os vilões do início não eram exatamente as versões mais maléficas e vis possíveis. Apesar do egoísmo e sede de poder de Sombria, na última temporada ela se viu em um impasse de realizar algo por outra pessoa e não por ela mesma.

Além de Micah, do qual ela diz ter uma dívida, Sombria entendeu que era tarde para extrair toda sua sede de poder e ambição, pois a magia negra já estava nos seus poros há muitos anos, destruindo parte de sua própria humanidade. Mesmo com muitos defeitos, ela escolheu proteger Felina (Catra) e Adora, mulheres adultas que foram manipuladas e torturadas psicologicamente na infância por ela. 

Esse sentimento de culpa é muito presente na última temporada, não apenas com Sombria, mas com a Felina, com Hordak, Scorpia e Cintilante. Os erros cometidos no passado não serão esquecidos, pelo contrário, serão entendidos, absorvidos e modificados, para que não voltem a acontecer. 

Perfuma e Scorpia são muito fofas nessa temporada. Scorpia, como na temporada passada, passou a ficar do lado da Aliança e pede desculpas sempre que pode haha. Arte de @itsbabypears

Parando de errar

Como já falado no texto sobre a personalidade abusiva de Felina, os erros de Sombria, Hordak e até mesmo da Cintilante são discutidos, e o mais importantes, sentidos. A culpa existe e está ali presente, não devemos passar pano, não devemos negar que existiram. 

Felina sofre a temporada toda, se vê finalmente questionando seus atos passados, entendendo a si mesma e seus sentimentos e colocando tudo isso numa linha lógica. Processando que suas maldades foram infantis, procurando por algum tipo de aceitação de alguém, ela tenta se sacrificar para que o Horde Prime não destrua tudo. 

E acredito que essa é a grande mensagem da última temporada: redenção. Por vezes é tarde demais, como foi com Sombria, mas mesmo no último momento é possível fazer algo para proteger o resquício de liberdade e civilidade. Já para Felina e outros personagens, há ainda muito o que viver e se reinventar, tentando proteger as pessoas, tentando demonstrar amor e compaixão. 

O grande vilão

Horde Prime, o vilão mor da série, é o tipo do vilão colonizador exploratório, que cai como uma luva para o universo de Etéria. Não foi necessário se aprofundar em algo mais específico nele, pois nas próprias entrelinhas fica evidente que ele é um ser muito antigo e que enfrentou os Primeiros, descendentes de Adora, num passado distante.

Os Primeiros, como vimos na 4ª temporada, não era um povo tão pacífico assim, e também fazia expedições espaciais atrás de planetas mágicos. Assim, os Primeiros entravam nesses planetas, iniciavam a colonização pacífica, mas montavam por trás dos panos uma arma para absorver os poderes mágicos daquele local, e levá-los para a sua terra natal, destruindo tudo.

Melog, um ser mágico de um planeta distante que Adora e seus companheiros vão em busca de pistas sobre o Horde Prime, foi uma vítima desse processo de destruição e o único sobrevivente de toda sua espécie. 

A relação do Melog com a Felina é sensacional!! Arte de @itsbabypears

Horde Prime, na tentativa de conquistar o resquício daquele poder mágico deixado por Melog, não entendeu o que se passava ali e teve que fugir e esconder essa história para seus outros clones. O papel desse vilão é de justamente se mostrar como um grande ditador “pacificador”, na tentativa de controlar todo o planeta em troca da liberdade das pessoas. Quem não aceita suas condições, é morto ou transformado em uma espécie de máquina, simples assim. 

Aparentemente Horde Prime foi um rival à altura dos Primeiros e acabou vencendo essa guerra e extinguindo os seres mágicos. Ao contrário de Etéria, o exército do Horde não é composto de mágica, e sim tecnologia (Entrapta amou isso, inclusive). Destruindo os seres mágicos, o Horde Prime praticamente se tornou um grande Imperador do espaço, atrás de poder e supremacia. 

Horde Prime mudou Felina

Esse tipo de vilão foi uma ótima forma de mostrar à Felina o que era de fato maldade, tortura e busca por poder. O primeiro Hordak, vilão que acreditava ser um grande comandante e líder supremo, era apenas um clone deixado de lado pelo Horde Prime, e possuía conflitos, dores e sentimentos. 

Hordak não chega nem perto do quão amedrontador é Horde Prime, e esse choque foi muito necessário para Felina entender que o problema ali era muito mais fundo do que seus medos e dificuldades sentimentais, mostrados nas temporadas anteriores. 

Após passar alguns anos da 1ª temporada até a última, Felina também se mostrou mais amadurecida e pronta para enfrentar as consequências de seus atos. Todas as princesas desconfiam dela, lembram das maldades que foram feitas e a todo momento a Felina se vê numa situação de tentar mudar. 

E aquela redenção esperada pelo fandom realmente aconteceu. A construção foi bem desenvolvida de acordo com o número de episódios possível. No fim, Felina está melhor, mais amorosa e compreensiva, mas demonstra ainda alguns medos, dificuldades de se expressar e raiva. 

Mas, como a mensagem de redenção é bem forte, Sombria lembra Felina que ela ainda tem tempo de limpar seu coração e parar de absorver tanto rancor e ódio. Perfuma, uma das princesas, também reforça que é possível tratar esses transtornos e procurar por formas mais leves e amorosas de viver. 

Sobre diversidade sexual

Provavelmente uma das coisas que mais chamaram atenção na última temporada foi a construção de casal. Nas temporadas anteriores já sabíamos que toda a equipe de produção do desenho trouxe conceitos amplos de diversidade, com os pais gays do Arqueiro, as mães da Scorpia, Kyle e Rogelio, além de Netossa e Spinnerella como casal de esposas. Fora os casais, Double Trouble é também uma ótima referência para se falar sobre a existência de pessoas não-binárias. 

E na última temporada a maioria dos personagens voltam a aparecer e possuem seu final, da forma mais simples até a mais rebuscada. Mas além deles, que já estão estabelecidos na história, também tivemos um passo muito importante: a existência de uma protagonista lésbica em um desenho para adolescentes. 

Inclusive, a nova transformação da Adora é maravilhosa. Uma mistura de mahou shoujo com jeitinho lésbico da Adora. Arte de @charlestan

Por conta disso é óbvio que parte das redes levantou questionamentos de que esses assuntos não devem ser tratados para as crianças, que é tudo má influência, sem-vergonhice e assim por diante. É uma discussão presente há tempos, com a máxima de que hoje a mídia está empurrando o “progressismo” e desrespeitando tradições e povos conservadores. 

O mais interessante, contudo, em She-ra, é que todas as questões sobre sexualidade e identidade de gênero são muito sutis e bem construídas. Os personagens não são gays por cota, não são não-binários por cota, ou trans, lésbicas, que seja. Lembra quando eu expliquei que Etéria é um universo diverso?

Voltando à diversidade geral

Sim, ele é diverso de forma muito ampla. Felina é uma mulher com características felinas. Huntara tem característica de réptil, assim como Rogelio e muitos outros personagens que apareceram na Terra Vermelha. Há povos com chifres de carneiros, cabeças de cogumelo e princesas com poderes mágicos diversos. 

Não é um universo com características culturais únicas também. Há costumes e hábitos diferentes. Conseguimos muito bem ver isso com o povo da Perfuma e depois com o baile de inverno no castelo de Frosta

Em um universo tão plural e diverso é natural que se tenha sexualidades diferentes. Já no nosso mundo existe, mesmo com as trocas comerciais constantes e a globalização. Se é um universo em que você pode mostrar toda sua individualidade, como é o de She-ra, é claro que teria diversidade sexual. 

A inclusão da diversidade sexual em She-ra

Os pais do Arqueiro são casados e possuem filhos. Como o Arqueiro também é negro, fica a questão que: ele e seus irmãos foram adotados, ou é possível procriar com uso da magia, mesmo com pessoas do mesmo sexo. No entanto esses detalhes não importam, pois eles são pais muito responsáveis e estudiosos ferrenhos da história de Etéria, é isso que fica evidente. 

Netossa e Spinnerella são casadas, mas são mais do que esposas, são princesas e que estão na aliança para lutar por Lua Clara e Etéria. Adora é muito mais do que uma mulher lésbica. Ela é a She-ra, ela tem personalidade própria, ela não está ali para ser lésbica, entende? E isso são coisas diferentes.

Você querer um personagem LGBT por uma questão comercial é você apenas dizer que o personagem está ali e existe, mas não há outras contribuições. É brincar com a sua audiência. Não basta simplesmente dizer: olha lá, ele é gay, viu? Ele é trans, viu? Ele é interssexual, viu? 

Catradora

Precisou de 5 temporadas para que a Adora entendesse que amava Felina. Ela sonhava em viver e casar com a Felina, enquanto que seu destino gritava para ela ser She-ra e não pensar em si mesma, apenas se sacrificar como a Mara fez.

Praticamente até o último instante ela abriu mão de seus sonhos para salvar a todos, e apenas quando Felina abre seu coração que ela se vê na vontade e na possibilidade de poder desejar algo além de ser a She-ra

O surto que eu dei, meu pai…

E isso é muito bem construído durante o seriado. A sexualidade da Adora e de Felina, assim como dos outros personagens, faz parte de sua identidade, não é a sua identidade. Poder desenvolver uma protagonista dessa forma em uma franquia tão famosa como She-ra é uma vitória. 

É uma vitória não apenas para qualquer um da sigla LGBT, mas é uma vitórias nas produções animadas mesmo. É possível desenvolver uma personagem cheia de características e adicionar sua sexualidade, tudo de forma natural. A relação da Adora com Felina é muito presente no seriado, tem uma linha de construção e não foi forçada. Ela está ali o tempo todo. 

Além disso outros casais existem, há amor de todas as formas possíveis. E, lembrando, na última temporada a Adora já está com cerca de 20 a 22 anos. Ela tem consciência de suas escolhas e está madura para encará-las. Ela não é uma criança, ela não foi influenciada, ela não foi pressionada a estar com a Felina e amá-la. 

Conclusão

Enfim, toda a mensagem do seriado é muito bonita. É claro que nas redes sociais o boom que Catradora se tornou foi surreal, e eu mesma me senti muito plena e feliz por ver tanta mulher no meio nerd tão contente. A quem acompanha a conta da Noelle no Twitter sabe do que estou falando. 

No fim, aos que imaginavam que o “lacre” não ia lucrar, She-ra teve uma construção completa de início meio e fim e terminou da melhor maneira possível, criando um ambiente participativo e muito saudável nas redes sociais. Até mesmo a Netflix ajudou na engrenagem da propaganda da última temporada, com resultados muito positivos. 

Topo