A Universal Pictures, conhecido estúdio de cinema norte-americano, vinha tentando trazer à tona a concepção do Dark Universe, ou seja, remakes do seu catálogo de monstros, interligando-os. Afinal, foi referência dos filmes de horror, abrigando títulos como “Drácula”, “Frankenstein”, “A Múmia”, “O Homem Invisível”, “O Lobisomem” e vários outros sucessos que possibilitaram continuações e demais produções.

Tentando permanecer com tal reconhecimento, que durou aproximadamente uns vintes anos, entre 1930 e 1950, realizaram refilmagens, resultando em incríveis fracassos, como “O Lobisomem” (2010) e “A Múmia” (2017). Assim, visaram uma nova estratégia, consistente na ideia de releituras das histórias clássicas a partir de diferentes diretores, tendo uma abordagem isolada de cada monstro.

Nesse sentido, tem-se que a primeira tentativa ocorre com Leigh Whannell (roteirista em Jogos Mortais, Sobrenatural e Upgrade: Atualização), responsável pela direção de “O Homem Invisível”, com a sua produção baseada no livro homônimo de H.G. Wells (1897). Apesar de mais de um século separando as duas obras, Leigh traz um material com resultado positivo e atual, inspirando-se levemente no conteúdo do autor Wells, quando traz o quesito da invisibilidade.

Uma história de abusos e traumas

A trama tem início com a protagonista, Cecilia Kass (Elisabeth Moss), tentando fugir da casa do cientista milionário Adrian (Oliver Jackson-Cohen). Os dois são casados e ele a fez passar por várias agressões físicas e psicológicas, caracterizando um relacionamento extremamente abusivo.

Cansada dos traumas, ela pede ajuda para a irmã, Emily Kass (Harriet Dyer), que ao encontrar com Cecilia do lado de fora da casa do marido, tarde da noite, procura saber o que está acontecendo. Antes de obter respostas, Adrian aparece e tenta impedir que a esposa vá embora, gritando e batendo no carro.

Assustada com tudo, Emily engata sem olhar para trás, finalmente “libertando” a irmã. No entanto, mal sabiam que seria o começo de novos pesadelos, ainda mais assustadores. Isso porque o passado permaneceria atormentado Cecilia, que sequer conseguia sair de casa sem pensar numa ameaça a espreitando, bem como novas situações de perigo à frente.

Elisabeth Moss olhando para a frente com tristeza e angústia

Ante o medo de Emily sofrer retaliações por causa dela, Cecilia fica abrigada na casa do policial James (Aldis Hodge), um homem simpático e acolhedor, pai de uma adolescente que mora na mesma residência, cujo nome é Sydney (Storm Reid). Os dois trazem um pouco de leveza para a trama em razão do relacionamento familiar deles.

Passado algum tempo, é dada a notícia de que Adrian havia falecido, com a morte declarada como suicídio. Além disso, o irmão dele, Tom (Michael Dorman), que é advogado, informa e faz a leitura de um testamento, entregando uma herança de U$5 milhões para Cecilia, com certas condições.

Após as duas notícias chocantes, coisas estranhas começam a acontecer ao redor da protagonista: objetos se movendo, alguns desaparecendo e outros surgindo em lugares que não estavam antes, além dos barulhos surgindo do nada. Mais tarde, tudo se intensifica e acaba por atingir todos que ama, além de ocasionar diversos questionamentos sobre a sanidade de Cecilia e a veracidade dos fatos.

Elementos da arte do “terror”

No que diz respeito ao elenco, pode-se afirmar que a atriz Elisabeth Moss dá um show de atuação, apresentando expressões faciais fortes e gestos corporais espetaculares, acrescentando todo o ar de opressão, exaustão e “loucura” necessários para a história. Vale lembrar que Moss está acostumada com papeis sobre o tema de abuso psicológico e físico, posto que já atuou em obras como The Handmaid’s Tale e Mad Men.

Em todos os trabalhos ela foi impecável e demonstrou estar confortável, sendo que Elisabeth carrega o presente filme nas costas, aproveitando uma das diferenças fundamentais dele, relativo ao olhar do personagem.

Na obra do autor Wells é apresentada a perspectiva do homem invisível, enquanto no filme há a visão da vítima dele, possibilitando o tom de terror com quase nenhum jump scare e a simples crença no horror sofrido pela Cecilia.

Elisabeth Moss olhando para frente, com uma marca de mão próxima do rosto dela, no box de um chuveiro.

Sobre os personagens restantes, serviram mais como papeis de apoio, com mais nenhum possuindo uma presença muito marcante ou significativa. Entretanto, foi interessante acompanhar a relação da Sidney e do James com a Cecilia… trouxeram um ar de normalidade e mais leveza, assim como mostraram a capacidade de o trauma criar raízes e afetar o bem-estar de todos.

Quanto aos aspectos visuais e sonoros, destaca-se a fotografia, proporcionada por Stefan Duscio, pelos enquadramentos certeiros e decisivos, junto com o deslocamento dos personagens na tela. Foi um combo que, aliado com a iluminação e a profundidade da visão dos cômodos, propiciaram um ambiente carregado de tensão e expectativa.

O silêncio em algumas cenas também aumentou ainda mais o impacto, fazendo o espectador esperar ansioso pelo surgimento do “monstro” e questionando se ele estaria mesmo lá… em algumas cenas você se vê prendendo a respiração e forçando a visão, esperando um passe de mágica acontecer.

Por fim, a cereja do bolo, a trilha sonora elaborada por Benjamin Wallfisch, que parece evidenciar o peso e a opressão carregados pela protagonista, além do mal que o personagem invisível representa. Cada som produzido acompanha bem a essência de cada personalidade, pois são carregados de ritmos atordoantes que se repetem, sendo altamente expressivos e encaixando com maestria.

É possível sentir o “invisível”

Como mencionado, o filme em questão consegue ser bastante atual, logo, ainda que baseado em um livro de anos atrás, atinge a contemporaneidade. Isso por si só é um feito e tanto, pois para obter tal êxito é necessário realizar vários recortes, refletir muito sobre o que quer apresentar ao público, é necessária uma visão aguçada por parte dos envolvidos. 

Diferente dos demais filmes de monstro da Universal, a produção da Blumhouse em o Homem Invisível consegue a característica de representar uma luz no fim do túnel, abrindo portas para outros trabalhos no mesmo estilo. A relevância dele não para por aí: traz temas muito importantes no decorrer do longa, dialogando com o contexto histórico atual. 

Nessa linha de raciocínio, surge o mais relevante de todos, tão debatido nas discussões virtuais e presenciais: o relacionamento abusivo, acompanhado da violência doméstica. Inclusive, um ponto interessante sobre o trabalho de Whannell é o foco dado à violência psicológica e emocional, uma das mais ignoradas e de difícil comprovação, em que facilmente a mulher é acusada de ser uma louca.

Elisabeth Moss com um celular na mão, olhando para cima aflita

Ele trabalhou tal aspecto com intenso cuidado, principalmente ao trazer à tona a deslegitimação da vítima. Num primeiro olhar, pode-se dizer que o roteiro foi descuidado, e que logo de cara dava para saber que Cecilia falava a verdade, já que todas as provas estavam lá (celular no sótão com fotos, a caneta suja com sangue no hospital, o sangue no frasco do remédio), tudo isso facilmente comprovaria as palavras dela.

Todavia, pode haver a interpretação da intencionalidade, uma artimanha para mostrar as dificuldades de se denunciar algo intangível. Foi trágico assistir a protagonista pedindo ajuda, dizendo várias vezes a história real e ninguém dar ouvidos.

Pelo contrário, afastaram-se dela, permitindo que tudo piorasse, tornando a presença do Homem Invisível sufocante, tal qual a falta de apoio, a ausência de voz da Cecilia e a falta de percepção dos demais de que algo estava fora de eixo e não era ela.

O homem invisível pede para que vejam, escutem, falem… acreditem!

Moss com as mãos em oreção e olhos fechados no chuveiro; ao lado esquerdo dela, a marca de uma mão no box

Por fim, o filme não deixa dúvidas sobre a morte do Adrian, percebe-se que o objetivo nunca foi esse. A história é realmente sobre a vítima e as amarras dela, um olhar delicado sobre o assunto, capaz de causar arrepios em quem já vivenciou momentos assim.

Nesse sentido, Whannell praticamente grita que as sequelas deixadas pelo abuso são muito maiores e piores que a de encarar um monstro, visível ou não. Portanto, ouçam o que a produção dele diz, e vejam o que deveria ser visto, olhem com cuidado, tanto o filme quanto os fatos da realidade, ganhando a capacidade de dar voz e legitimidade a um problema ainda muito real.

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